segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

OFFSIDE (2006), JAFAR PANAHI


Longe do drama de O Círculo (sobre a prisão das mulheres nas ruas de Teerão), o presente filme é uma cerejeira em flor para o cinema iraniano e para o mundo, desafiando a autoridade com uma frescura quase absurda. Para já, é filmado no próprio dia do jogo, quase em tempo real - o filme tem cerca de 90 minutos, tal como um jogo de futebol. Depois, os soldados estão tão confusos e desmoralizados como as mulheres, presos numa situação absurda e insolúvel. É uma obra que celebra a astúcia e tenacidade das suas heroínas e lança um olhar simpático nos dilemas éticos que enfrentam os seus carcereiros. Ambos se encontram atolados numa série infindável de discussões e negociações, onde quebrar uma regra sem sentido pode trazer graves repercussões.
As mulheres querem aceder ao mundo da excitação, do frenesim e da liberdade. São problemáticas e insistentes, mas ao mesmo tempo inocentes e detentoras de uma exposição lógica do pensamento que exclui qualquer traço de malícia. Lutam pela razão e as suas perguntas não cessam – constituem o sexo forte. A paixão, o desapontamento e a excitação em que vivem são esmagadores. Os soldados guardam-nas com confusão e incerteza, impotentes; chegam até a ser atenciosos e simpáticos, como irmãos benevolentes. Estas raparigas não são activistas a atacar o sistema, são apenas fãs de futebol e patriotas. Apesar de serem tratadas injustamente, nunca perdem o foco no jogo, no que agora lhes interessa. Não estão conscientemente a lutar pelos seus direitos - não têm essa noção - apenas querem ver o jogo. E há inúmeros actos de bondade de ambos os lados, vindos de pessoas boas que vivem em circunstâncias castradoras.
A abordagem única do realizador, fez dele um dos cineastas mais importantes e controversos do Irão até ao momento, onde a maioria dos seus filmes foi banida. Offside recebeu o Leão de Ouro em Berlim e fez parte da selecção oficial dos festivais de Nova Iorque e Toronto.

Aqui, o futebol não é o jogo, mas o veículo para se chegar à luta de géneros. Assim como as mulheres estão proibidas de assistir às partidas nos estádios, também a nós, espectadores, nos é vedado o que se passa em campo. Quem joga são as mulheres e quem dita as regras do jogo são os soldados que as encarceram entre pilares, arbitrando sob ordens superiores. O que estes acham é totalmente irrelevante e por isso nem sequer se cansam a formar uma opinião, corrompidos que estão pelo sistema.
A batalha entre estas duas equipas é emocionante e enternecedora. As jovens jogadoras são determinadas e inteligentes e fazem de tudo para conseguirem assistir ao jogo. Trajadas com roupas largas que encobrem as suas formas, disfarçam-se de homem para tentarem entrar no estádio. Uma delas rouba um uniforme do Exército e é descoberta quando está confortavelmente sentada no estandarte oficial. Sendo já uma reincidente, vem algemada e assim permanece todo o filme, personificando o soldado preso que também não pode assistir ao jogo. Outra, já depois de encurralada, diz ter muita urgência em utilizar as instalações sanitárias, e um soldado escolta-a até lá, não sem antes a fazer passar pela humilhação de andar com o poster de um jogador preso à cara, para não poder ver nada do que se passa dentro do estádio. No caminho, discutem futebol e expõem as suas ideias sobre algumas equipas. É esta a rapariga que passa pela maior humilhação, mas o seu esforço é recompensado, ao conseguir fugir das instalações sanitárias com a ajuda de alguns homens que cercam o soldado. No entanto, ela acaba por voltar ao seu posto, porque ficou a pensar no castigo que os soldados receberiam se tivesse escapado.


Estes adeptos parecem não ter nada contra a que as mulheres assistam ao jogo. Não as denunciam quando as descobrem e ainda as ajudam. Os próprios soldados não estão contra as mulheres, cumprem apenas ordens e só querem voltar para as suas famílias, sabendo que, se as perderem, ser-lhes-á retirado esse direito.
As mulheres estão proibidas de assistir aos jogos, sob pena de perderem a sua virtude e pureza perante a linguagem turbulenta. Considera-se imoral que vejam as pernas e braços desnudos dos homens no estádio. Certo é que não existe nenhuma lei que as proíba, e na prática sabemos que esta proibição se deve à forma como a mulher é vistas pelo regime - ser inferior, sem quaisquer direitos.  Mas aqui, as raparigas estão tão presas como os soldados, afastados das suas famílias para cumprirem um serviço militar em que nem sabem (nem se interessam por saber) se acreditam, encarando-o apenas como uma obrigação - e quem os pode censurar? No momento em que as prendem no quadrado, ficam automaticamente e igualmente presos por elas e a elas. É um jogo fascinante este que aqui se joga, entre duas equipas que detêm a outra prisioneira: as mulheres estão furiosas com as regras mesquinhas que as impedem de ver o jogo que amam, e os soldados recrutas estão relutantes: querem assistir à partida, mas não podem porque têm de as vigiar.
Fora de campo dá-se o jogo que nenhum consegue ver. É a pedido das raparigas que um dos guardas começa a relatar os passes que vislumbra por uma entrada do estádio. Os relatos são verdadeiramente entusiastas e ambos festejam o facto do Irão não estar a perder no final da 1ª parte. É isso que o futebol tem de encantador: mesmo nas mais desesperadas circunstâncias, num ambiente de segregação, homens e mulheres - já não importa - festejam igualmente e sem preconceitos por uma causa comum. Talvez por isso os homens estejam a ser tão abertos à presença das mulheres, porque não é um dia igual aos outros, é o dia em que o Irão se pode classificar para o Mundial de 2006. 



Uma das raparigas, a primeira que aparece, é claramente uma novata e está fora de jogo desde o início, ao ser extorquida por um vendedor ilegal e ao deixar o soldado que a escolta fazer uma chamada do seu telemóvel - o mesmo que ela não pode usar. No fim, sabemos que nunca antes tinha estado num estádio e que foi prestar homenagem ao amigo que morreu meses antes numa partida e que se estivesse vivo, iria ver este jogo. Existem várias cenas hilariantes, mas outras bastante sérias (a evocação da morte de sete crianças) que dão aos sete foguetes, que mais tarde a menina leva na mão, um significado profundo. Os minutos finais do jogo são mais que gratificantes e remetem-nos para o sentido de fraternidade e união que existe no Irão. Todos rezam juntos pelo seu país. Os guardas beijam-se e são puxados para dançar, as meninas festejam com o rapaz e inundam as ruas com gritos e canções. Estas cenas de celebração foram filmadas em tempo real, o que impõe ao filme uma singular autenticidade. Ver o quanto esta vitória representa para o povo iraniano é incrivelmente tocante.


Em Offside todos são amados por igual – os soldados e as mulheres indomáveis. Acima de tudo, Panahi ama as querelas que se alastram no caótico Teerão, onde quase tudo parece possível quando se negoceia e argumenta com fervor. O realizador passou a sua obra a mostrar pessoas enclausuradas. Aqui, as raparigas estão imobilizadas num rectângulo de segurança no exterior, mas no fim há a libertação dessa sensação e a população comemora. Panahi está a celebrar o seu próprio sucesso, uma vez que não teve permissão oficial para filmar Offside. A vitória do Irão não mudará nada, mas o seu filme pode mudar, pode chegar a muita gente. Em países com forte repressão político-social, o cinema reveste-se de um carácter de extrema importância.

sábado, 21 de janeiro de 2012

L'APOLLONIDE


Quinta longa-metragem de Bertrand Bonello, com Céline Sallette (Un été brûlant), Hafsia Herzi (O segredo de um cuscuz) e Alice Barnole numa representação bastante bem conseguida.
Salvas para a fotografia e mise-en-scène irrepreensíveis.
Errou ao expor sem pudor a brutalidade de que o filme tenta viver um pouco (e por isso a faz render). Não era necessário. Por vezes o que não se mostra tem bastante mais força. Mas conseguiu, de facto, fazer-me cerrar as mandíbulas durante uma semana.
Análise integral aqui.