segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O presente de Radu Muntean

Depois do exímio trabalho de câmara de João Canijo em Sangue do Meu Sangue (entrevista ao realizador aqui), Radu Muntean mostra-nos exactamente o oposto em Terça, depois do Natal, filme absolutamente deslumbrante e esmagador, dotado de uma notável economia formal. Planos anormalmente longos - não mais de 12 no total -, câmara fixa, da qual nos esquecemos, absorvidos que estamos na contemplação. E o que contemplamos é o amor de um homem por duas mulheres. Um homem passivo, que deixa a vida correr sem tomar grandes decisões, até ao dia em que as mulheres se conhecem, despertando nele uma inquietação até aí contida. É o tipo perdido, que acha que sabe o que quer, até o ter e passar a desejar outra coisa. Vê-se moralmente obrigado a escolher, sem ter tido tempo para racionalizar a sua decisão, e por isso quando se confessa a Adriana aquilo lhe sai tão naturalmente – “Estou muito apaixonado. Conheci uma pessoa.” Adriana põe à prova nesta cena os limites do controlo – notável interpretação de Mirela Oprisor.
Até este ponto, foi-nos apresentada a vida secreta de Paul e Raluca, na intimidade da qual entramos por portas escancaradas. Assistimos à cena em que ele a visita na casa da mãe, que o presenteia austeramente, mas com uma fatia de bolo que sobrou dos seus anos. Demasiado habituado a ter Raluca por perto, Paul perde o norte quando esta se ausenta de Bucareste por alguns dias, para visitar a mãe e passar com ela o Natal. E no seu constrangimento, decide terminar com a mulher. A partir daí é-nos revelada a vida conjugal do casal destruído. Raluca não aparece mais no ecrã, e quando Paul se muda para sua casa percebemos o quão perdido está. Pela primeira vez, vê-se sozinho e perde as certezas.
Vamos observando o enorme entendimento entre o casal, que depois da tempestade que abalou o seu lar, se comporta com enorme compreensão – exemplo máximo disso é a cena final com as prendas. Paul, personagem com bastante sentido de humor no início do filme, ganha uma expressão cada vez mais pesada, causada pelo remorso. E não chegamos à Terça, depois do Natal, esse dia fica no futuro incerto dos personagens.
Estamos perante um verdadeiro raio x à vida de três pessoas – o raio-x que Raluca mostra ao casal, no consultório médico. Nessa cena é igualmente emblemática a movimentação dos personagens no plano – tudo parece ter sido trabalhado ao milímetro, mas nada é forçado. A tensão aumenta à medida que escavamos nos seus dramas pessoais, e as cenas foram filmadas por ordem cronológica para que esse efeito fosse notório e sincero. A acrescentar que o casal Paul e Adriana é-o na vida real, o que ajuda à perfeição das cenas entre eles.
Quarto filme do realizador Radu Muntean, vem na linha do novo cinema romeno que nos tem sido apresentado nos últimos dez anos, e que já conta com obras maiores como Aurora, 4 meses, 3 semanas e 2 dias ou A Leste de Bucareste. Terça, depois do Natal é a sua nova aquisição.
Em exibição no cinema King.

sábado, 15 de outubro de 2011

Chacun son cinéma






Não, não é um post sobre esse maravilhoso filme de 2007 que reúne 33 curtas de aclamados realizadores, mas podia ser. Este post, a pretender ser alguma coisa, é um elogio ao cinema. Até gosto de alguns filmes do Godard - À Bout De Souffle (1960), Le Mépris (1963) ou Pierrot le fou (1965) - e reconheço o seu génio. Mas em 67, vinte anos antes de eu nascer, o senhor teve a triste ideia - que apenas poderia vir de um cérebro tão distinto e arrogante como o seu - de proclamar o fim do cinema em Week EndPara o desmentir, Woody Allen pariu, 10 anos depois, a sua obra-prima Annie Hall. Em 1990, Abbas Kiarostami realizou Close-up. Com ele aprendi a importância do tempo no cinema, a beleza contida na sua quase 'suspensão'. Mas por muito que o admire, o cinema não morreu, como o outro também disse, com ele. 
Esta semana estreou um filme brasileiro de muito bom gosto: No Meu Lugar. O realizador, que também é crítico de cinema, chama-se Eduardo Valente e é a sua estreia em longas-metragens. É raro ver um primeiro filme tão bem tratado. Sobre ele podem ler aqui algumas linhas. 
O meu ponto é o seguinte: o cinema não pára de crescer e de surpreender. Depois de Godard e da Nouvelle Vague terem caído na atrofia que criaram, houve pessoas que evoluíram, pessoas que nasceram e pessoas que se dedicaram a continuar a sua História. Hoje fazem-se filmes tão belos como há 50 anos atrás. Se estamos ou não despertos para o reconhecer, depende do nosso espírito - se é livre ou formatado.