When you know
you will be lied to, it’s better not to ask.
Foram precisas três vezes para conseguir ver
o novo filme do Kiarostami de uma ponta a outra, facto que não é inédito na
minha relação com os seus filmes. A primeira vez que tentei foi especialmente
dura, logo na cena inicial filmada sobre uma claustrofobia exasperante que
luta por agarrar a rapariga. Os figurantes parece que vão ali ficar para
sempre, e ela apenas sai para dentro de um táxi. É neste ambiente que somos apresentados
a Akiko, antes mesmo de lhe conhecermos o rosto. Ao telefone, mente passiva e
descaradamente ao namorado desconfiado. Queixa-se ao patrão que tem exame no
dia seguinte, não podendo por isso trabalhar nessa noite, para além de ainda
ter a avó à sua espera. Mas desde o início que a decisão está tomada, de outro
modo não estaria ali e sim a estudar. Ter trabalho marcado para essa noite é a
desculpa que dá a si mesma para não ter de se justificar perante a avó. Akiko
está sempre impávida e nunca sabemos bem quais os seus verdadeiros sentimentos.
Quando se exalta no bar, a câmara não a filma, voltando a ela quando já está
serena. Quando, mais à frente, discute com o namorado à entrada da faculdade, mal
a ouvimos. Ainda na cena inicial, tem o cuidado de pedir o batom à amiga, que
coloca no fim de ouvir as comoventes mensagens que a avó lhe deixou durante
todo o dia que passou à espera dela na estação de comboios, por entre as quais
lhe diz: “She looks like you but she
doesn’t”. Habituada a representar diferentes personas de noite, conforme o trabalho a obriga, Akiko não sabe em
que persona se encaixar. Ver a avó é
porventura voltar à pessoa que era há dois anos atrás, antes de entrar em
Tóquio. Não sabemos bem por que está a estudar, pois parece pouco interessada,
não respondendo correctamente a uma pergunta simples do exame. Não sabemos se
gosta do namorado ou do que gosta nele, nem ela própria sabe. Anda ali à
deriva, a tentar ser alguém. Alguém como a rapariga do quadro, a filha ou a
mulher de Takashi.
Foi mais ou menos por esta altura que tive de
parar. A capacidade que a avó tem de colocar doçura em todas as palavras, quando
o que sente é desespero, a sua silhueta, ao longe, rodando a cabeça em todas as
direcções à procura da neta, ainda com um fio de esperança, estilhaçou-me o
coração.
Dias depois, reiniciei-o e consegui ir até ao
vulto de Akiko reflectido no espelho do quarto de Takashi, um vulto esfumado
como alguém que não conhecemos ou como uma aguarela que desaparece com a chuva.
O desconforto de Takashi é estupidamente bem conseguido para um actor
não-profissional. Ao contrário dela, ele não sabe como se comportar numa
situação destas, ou sequer o que quer daquela miúda. Acaba por se sentir
envergonhado por entrar para a contagem dos homens que a oprimem e a afastam da
busca interior que deixou suspensa, não conseguindo encaixar em nenhum lugar.
Assim sendo, o melhor que Takashi pode fazer é tomar conta dela e ajudá-la a
descobrir-se. Ser a avó que ela rejeitou. Claro que as suas boas intenções caem
por terra quando confrontadas com o namorado de Akiko, o único personagem que
se comporta como os sentimentos ditam e que sabe o que quer, ainda que pelos
motivos errados.
Nisto já eu ia na terceira tentativa, que foi
definitiva e terminou abruptamente, com o micro-ondas a dar o sinal de alarme.
Cheguei ao fim de coração acelerado e não consigo pensar num final melhor que
aquele. E quem diz final, diz princípio e meio. Kiarostami é daqueles
realizadores que não precisa de palavras para se expressar. Podia ver os seus
personagens a passear de carro por uma qualquer cidade durante horas, observando
no vidro o reflexo dos lugares por onde passavam, as nuvens no céu, os
semáforos. Kiarostami não precisa de dizer nada porque está lá tudo. A
personagem mais querida do filme é a avó e nem lhe conhecemos o rosto. É a que mais
se esforça por conseguir entrar, com cuidado e delicadeza, a que fala sem obter
resposta. Kiarostami não precisa de um rosto, quando tem uma voz. O contrário,
claro, também se verifica. Akiko pouco se manifesta porque a sua expressão fala
por si. O professor é ao mesmo tempo apaziguador e catalisador de revolta.
Tentando proporcionar um equilíbrio ao jovem casal e a cada um individualmente,
é sacrificado por se envolver num amor que não é seu, porque estava sozinho e
queria companhia, porque se sentiu culpado, porque tentou ser peixe e carne.
Preciso de tempo extra para dedicar a
Kiarostami. Ele faz-nos ver a vida quando não estamos preparados. É um dos meus
realizadores vivos preferidos e não consigo falar sobre ele porque o amo. As
coisas que amo, eu só olho e qualquer palavra não quer dizer nada. Não tinha em
mente escrever e sinto-me até envergonhada por o ter feito, tão pequena sou
perante ele e a vida. Mas é domingo à noite e estou sozinha em casa, como
alguém que finge estar apaixonado pela chuva, quando a roupa não seca e as
camisas brancas não nascem nos cabides.
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