domingo, 29 de setembro de 2013

Like someone in love


When you know you will be lied to, it’s better not to ask.



Foram precisas três vezes para conseguir ver o novo filme do Kiarostami de uma ponta a outra, facto que não é inédito na minha relação com os seus filmes. A primeira vez que tentei foi especialmente dura, logo na cena inicial filmada sobre uma claustrofobia exasperante que luta por agarrar a rapariga. Os figurantes parece que vão ali ficar para sempre, e ela apenas sai para dentro de um táxi. É neste ambiente que somos apresentados a Akiko, antes mesmo de lhe conhecermos o rosto. Ao telefone, mente passiva e descaradamente ao namorado desconfiado. Queixa-se ao patrão que tem exame no dia seguinte, não podendo por isso trabalhar nessa noite, para além de ainda ter a avó à sua espera. Mas desde o início que a decisão está tomada, de outro modo não estaria ali e sim a estudar. Ter trabalho marcado para essa noite é a desculpa que dá a si mesma para não ter de se justificar perante a avó. Akiko está sempre impávida e nunca sabemos bem quais os seus verdadeiros sentimentos. Quando se exalta no bar, a câmara não a filma, voltando a ela quando já está serena. Quando, mais à frente, discute com o namorado à entrada da faculdade, mal a ouvimos. Ainda na cena inicial, tem o cuidado de pedir o batom à amiga, que coloca no fim de ouvir as comoventes mensagens que a avó lhe deixou durante todo o dia que passou à espera dela na estação de comboios, por entre as quais lhe diz: “She looks like you but she doesn’t”. Habituada a representar diferentes personas de noite, conforme o trabalho a obriga, Akiko não sabe em que persona se encaixar. Ver a avó é porventura voltar à pessoa que era há dois anos atrás, antes de entrar em Tóquio. Não sabemos bem por que está a estudar, pois parece pouco interessada, não respondendo correctamente a uma pergunta simples do exame. Não sabemos se gosta do namorado ou do que gosta nele, nem ela própria sabe. Anda ali à deriva, a tentar ser alguém. Alguém como a rapariga do quadro, a filha ou a mulher de Takashi.
Foi mais ou menos por esta altura que tive de parar. A capacidade que a avó tem de colocar doçura em todas as palavras, quando o que sente é desespero, a sua silhueta, ao longe, rodando a cabeça em todas as direcções à procura da neta, ainda com um fio de esperança, estilhaçou-me o coração.
Dias depois, reiniciei-o e consegui ir até ao vulto de Akiko reflectido no espelho do quarto de Takashi, um vulto esfumado como alguém que não conhecemos ou como uma aguarela que desaparece com a chuva. O desconforto de Takashi é estupidamente bem conseguido para um actor não-profissional. Ao contrário dela, ele não sabe como se comportar numa situação destas, ou sequer o que quer daquela miúda. Acaba por se sentir envergonhado por entrar para a contagem dos homens que a oprimem e a afastam da busca interior que deixou suspensa, não conseguindo encaixar em nenhum lugar. Assim sendo, o melhor que Takashi pode fazer é tomar conta dela e ajudá-la a descobrir-se. Ser a avó que ela rejeitou. Claro que as suas boas intenções caem por terra quando confrontadas com o namorado de Akiko, o único personagem que se comporta como os sentimentos ditam e que sabe o que quer, ainda que pelos motivos errados.
Nisto já eu ia na terceira tentativa, que foi definitiva e terminou abruptamente, com o micro-ondas a dar o sinal de alarme. Cheguei ao fim de coração acelerado e não consigo pensar num final melhor que aquele. E quem diz final, diz princípio e meio. Kiarostami é daqueles realizadores que não precisa de palavras para se expressar. Podia ver os seus personagens a passear de carro por uma qualquer cidade durante horas, observando no vidro o reflexo dos lugares por onde passavam, as nuvens no céu, os semáforos. Kiarostami não precisa de dizer nada porque está lá tudo. A personagem mais querida do filme é a avó e nem lhe conhecemos o rosto. É a que mais se esforça por conseguir entrar, com cuidado e delicadeza, a que fala sem obter resposta. Kiarostami não precisa de um rosto, quando tem uma voz. O contrário, claro, também se verifica. Akiko pouco se manifesta porque a sua expressão fala por si. O professor é ao mesmo tempo apaziguador e catalisador de revolta. Tentando proporcionar um equilíbrio ao jovem casal e a cada um individualmente, é sacrificado por se envolver num amor que não é seu, porque estava sozinho e queria companhia, porque se sentiu culpado, porque tentou ser peixe e carne.

Preciso de tempo extra para dedicar a Kiarostami. Ele faz-nos ver a vida quando não estamos preparados. É um dos meus realizadores vivos preferidos e não consigo falar sobre ele porque o amo. As coisas que amo, eu só olho e qualquer palavra não quer dizer nada. Não tinha em mente escrever e sinto-me até envergonhada por o ter feito, tão pequena sou perante ele e a vida. Mas é domingo à noite e estou sozinha em casa, como alguém que finge estar apaixonado pela chuva, quando a roupa não seca e as camisas brancas não nascem nos cabides.

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