segunda-feira, 8 de junho de 2020

ainda a respeito da violência

fiz o 1º ciclo do ensino básico num colégio de bem, em Benfica. a mãe trabalhava lá desde os 17 anos, o que me deu free pass para receber a educação dxs ricxs, digamos, deu-me um golden card. nunca podia fazer asneiras como as outras crianças ou dava castigo na certa. uma vez a teacher pôs-me na rua. escondi-me atrás de um armário e chorei com medo que a mãe me visse, já a pensar no castigo que aí vinha. não me faças passar vergonhas dizia. mas fiz. algumas. ainda assim, safei-me. o Nuno não teve a mesma sorte. quando a teacher me pôs na rua, o Nuno já não estava lá para o testemunhar. aos 7 anos, no fim da 2ª classe, foi dispensado da escola. o Nuno é uma criança violenta diziam. o Nuno não era filho de nenhuma funcionária. o pai do Nuno tinha dinheiro, mas o dinheiro não conseguiu dar ao Nuno um lugar no colégio dxs meninxs brancxs, ups, ricxs. o racismo não está à venda e em 95 aprendia-se na cartilha.

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em 97 chorei bué por a mãe não me deixar ir para a E.B.2/3 de Benfica para onde iam todxs xs colegas da 4ª classe e por me obrigar a ir para a escola da Amadora, mais perto de casa. antes do meu 1º dia na D. Francisco Manuel de Melo, a mãe teve uma conversa comigo sobre oferecerem-me droga. nunca ninguém me ofereceu droga, tive sempre de a comprar às escondidas do contínuo, um retornado, ups, reformado da PSP, que fazia ali um biscate. o racismo está seguro e em 97 era mantido nas escolas da periferia pela boa ordem de ex polícias da PSP.

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em 2002, na Seomara da Costa Primo, tive a primeira e única professora negra em todo o meu percurso escolar e académico. nessa altura já a turma se constituía maioritariamente por alunxs brancxs porque xs alunxs não-brancxs tinham sido encaminhadxs para o ensino profissional. o racismo institucional existe e em 2020 ainda debatemos quotas étnico-raciais.

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com o homicídio de George Floyd e a covid no Bairro da Jamaica, o país trouxe novamente à tona o seu calcanhar de Aquiles. sobre o homicídio de Georges Floyd: "se fosse branco não davam tanto protagonismo à notícia". sobre o bairro da Jamaica: elxs não pensam, têm de ser ensinadxs". "elxs", "xs outrxs", "têm de ser ensinadxs", o que sugere a irracionalidade e incapacidade da gestão das suas vidas. é o discurso colonialista do bom português civilizador que ainda hoje se (re)produz nos manuais escolares e nos almoços de família de domingo. o racismo estrutural existe. a segregação existe e subsiste na arquitetura e no pensamento. o racismo institucional está diretamente ligado à segregação residencial que nos finais dos anos 90 e inícios dos anos 00 afastou muitxs jovens da minha escola.

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a escola tem de ser inclusiva. a escola tem de ser representativa. a escola tem de desconstruir e reconstruir a História, tem de descolonizar o conhecimento. a escola tem de mudar. a começar pelas pessoas que contrata para limpar as suas instalações, pelos manuais escolares de História e de Português, pelo Plano Nacional de Leitura e pelo corpo docente e discente. mas a escola não muda sozinha. a escola existe dentro de uma sociedade organizada em torno de relações políticas e económicas. essas relações são relações de poder. a lógica do desenvolvimento e da velha "expansão", a lógica do crescimento, da inovação e da globalização não nasceu do "contato entre povos", como a escola ensina às crianças, nasceu da violência. essa violência existe e está exposta no nosso quotidiano pela visibilidade - quando apanhamos os primeiros comboios da linha de Sintra, direção Lisboa; quando vamos ao WC de um centro comercial; na fila do Centro de Emprego; nas cozinhas dos restaurantes; nas obras no prédio ao lado - mas também pela invisibilidade - nos teatros, nas universidades, na televisão, no nosso grupo de amigxs. lembram-se das telenovelas em que a empregada doméstica era sempre uma mulher negra? a liberdade e a visibilidade branca, em especial a do homem branco europeu cis hetero, é a segregação, a exploração e a invisibilidade de uma mulher negra. o privilégio branco existe. o racismo é uma problemática branca. racismo reverso não existe porque nós, brancxs, continuamos a tirar vantagem do sistema que nos beneficia todos os dias. na escola, no trabalho, no centro das cidades, nos tribunais, nas casas que escolhemos para viver. nós, brancxs, precisamos caminhar no sentido de desmontarmos os nossos próprios racismos. ainda há muito caminho pela frente. todos os dias sou lembrada disso. não poucas vezes, a minha cabeça não pensa para lá do seu privilégio branco. precisamos de abdicar dos nossos privilégios, mudando estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjectivas, vocabulário, como explica Grada Kilomba, aqui:



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