terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Le Havre, Aki Kaurismaki


O mais belo sonho carrega, como uma cicatriz, a sua diferença da realidade, a consciência de que o que ele concede é mera ilusão – Theodor Adorno sobre Amerika, o primeiro romance de Kafka, que conta a saga de um emigrante europeu nos Estados Unidos. Kaurismaki cita-o a bom tempo, evocando a problemática dos refugiados na Europa. A utopia de Le Havre reside em mostrar, sem dramatismos, o verso da moeda.

Herdeiro da tradição humanista e cómica de Chaplin e Renoir, do burlesco de Tati e do realismo poético de René Clair e Carné, o finlandês constrói uma espécie de conto de fadas num bairro de pescadores da cidade portuária de Le Havre, na Normandia, populado por pessoas de hábitos e rotinas atemporais, que se movimentam entre uma padaria, uma mercearia e um café. O tempo é o de uma outra vida e o ritmo é vagaroso, em claro protesto à velocidade da era digital.
Kaurismaki é um homem clássico que não gosta de arquitectura moderna. A sua câmara de filmar é de 1974 e pertenceu a Bergman. Com ela filma cenas longas e silenciosas sobre cenários teatrais, iluminados artificialmente. Vinys e vestidos vintage imprimem nostalgia à acção, e o único telemóvel que se vê pertence ao inspector, que transporta uma aura negra, mas não passa de um bom coração.
O nome dos personagens remete igualmente para o passado que o realizador homenageia. O protagonista Marcel Marx, levava uma vida boémia em Paris (André Wilms entrou em La vie de bohème, em 1992) e é agora um engraxador de olhar pesado, mas portador de grande optimismo e dignidade. A sua esposa, Arletty, sofre de cancro terminal e encarna o espírito e o pathos do proletariado francês dos inícios do século XX.
A trama lembra Casablanca. Marcel vê-se na obrigação moral de ajudar um refugiado africano a chegar a Londres, onde a mãe o espera. Para isso, conta com o apoio de todos os vizinhos (excepto um, porque há sempre uma ovelha negra em cada família) e juntos formam uma espécie de ‘nova internacional pós-comunista’, cunhada pela consciência social, fraternidade e união. Idrissa, o menino fugitivo, é um símbolo passivo que, com Arletty no hospital, cuida da lida da casa e de Marcel, um outro menino muito grande, que se orgulha da sua profissão por ser a “mais próxima das pessoas e a última a respeitar o “Sermão da Montanha””. Há uma ironia cruel, uma auto-paródia e um absurdo sem precedentes que vão desde o sinistro inspector Monet, que ajuda Marcel na sua missão, até à cena surreal com o ananás. No fim, o clássico happy end contraria os presságios de Arletty e mostra que os milagres acontecem, num mundo ao contrário.

Que se vanglorie este cinema, que põe o espectador activo perante a obra, sem artifícios ou adornos que o distraiam. Dotado de uma economia técnica espantosa, é um filme extremamente seco que nos faz reflectir sobre a ‘Europa sem fronteiras’, e apesar de toda a apropriação do passado, tem a frescura de um robalo acabado de pescar.

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