domingo, 26 de fevereiro de 2012

Shame, Steve McQueen


Uma Nova Iorque escura e depressiva por onde um executivo de uma empresa qualquer – não sabemos de que área se trata – vagueia à noite com o intuito de satisfazer os seus ímpetos carnais. Um apartamento pequeno, com vidros altos que deixam entrar as luzes da cidade, onde recebe mulheres ou vê pornografia, quando a noite de engate não supre o efeito desejado. O engate é subtil e vive do olhar. Brandon é homem de poucas palavras e a sua figura permite-lhe ter confiança suficiente para fazer esse jogo. O efeito pretendido consiste em neutralizar a dor, por ventura plantada há muito, num lugar como a Irlanda, onde nasceu, ou Nova Jersey, onde foi criado – locais mencionados pela irmã (“We’re not bad people, we just come from a bad place”).
A rotina diária de Brandon começa com masturbação no duche, enquanto deixa correr os recados tempestuosos de Sissy no atendedor de chamadas. No metro, vai a comer com os olhos a mulher mais atraente que encontrar, que facilmente lhe retribui o entusiasmo. No escritório, ao ver o seu computador ser mandado formatar por causa dos vírus – com as toneladas de pornografia lá enfiadas - masturba-se na casa de banho, e à noite, quando não está por sua conta, é arrastado até bares pelo patrão, que, casado e pai de filhos, precisa de se distrair.
Sem obter respostas, Sissy aparece-lhe no apartamento para deitar por terra todo o seu esquema tão bem organizado. Visivelmente transtornado com a sua chegada, Brandon sente-se desconfortável ao seu lado e afasta-a, incapaz de aceitar o seu afecto. Sissy, pelo contrário, procura contacto e exterioriza a sua frustração. Num acto puramente imaturo e provocatório, envolve-se com o patrão do irmão na sua própria cama. Furioso, Brandon veste o facto de treino e corre durante uns quantos quarteirões numa cena de beleza incomensurável, filmada num único take. Mais tarde, Sissy tenta infiltrar-se na sua cama, mas ele rejeita-a com ferocidade. Também o apanha na casa de banho a vir-se em frente ao espelho, mas nunca o recrimina ou faz julgamentos sobre a sua vida sexual, que parece conhecer bem e compreender como uma espécie de escape ou tranquilizante a que o irmão se agarra. Ela foi para o ajudar, mas não consegue porque, como o próprio lhe diz, nem sequer sabe tomar conta dela, o que faz com que ele tenha de se preocupar e desconstruir todo um sistema de defesa imperturbável - "You're a burden. You're just dragging me down."
À medida que Brandon se apercebe do fosso que criou com o mundo, tenta relacionar-se saudavelmente com uma mulher. Leva-a a jantar a um restaurante onde se sente um outsider, incomodado pelo empregado de mesa que lhes faz variadíssimas sugestões, quando Brandon não podia interessar-se menos com o que vai comer. Ele está completamente fora-de-jogo, não sabe como interagir com Marianne, e enquanto a leva ao metro conversam sobre sonhos perdidos. Brandon queria ter sido pianista e viver numa outra época, daí os vinys de música clássica que escuta sozinho em casa. (Fica patente a valorização de tudo o que é oposto ao que o rodeia, à parafernália de corpos, objectos e informação. Mas, como todos nós, deixou-se engolir pela era da web, do acesso fácil, do descartável, do consumo desregrado.) Na tarde em que se envolve com Marianne, sofre de disfunção eréctil, porque ao gostar dela não consegue pensá-la como objecto sexual e é-lhe impossível tirar prazer de outra forma que não a do sexo descomprometido e maquinal. O amor está a milhas do cenário que criou.
A partir daí, enterra-se no seu próprio calvário: mete-se, propositadamente, com a namorada de um tipo que lhe marca a cara, entra num bar gay e deixa que um homem lhe faça sexo oral, convoca uma orgia com duas mulheres, impecavelmente filmada, onde assistimos ao seu desespero, quando o sexo deixou há muito de ser um prazer e se tornou um escape. Na verdade, Brandon não quer estar ali, mas essa é a única coisa que sabe fazer para fugir de si mesmo. Nessa cena, vemos um corpo a tentar matar qualquer resquício de alma, memória, e o orgasmo é a apoteose do seu sofrimento atroz. Mal ou bem, ele vive para o seu vício e se a princípio o sexo lhe aliviava a angústia, agora alimenta-a, como se o orgasmo fosse o elemento catártico de um peso que carrega silenciosa e secretamente consigo e só naquele momento exterioriza.
Apesar do personagem principal ser viciado em sexo, o sexo que McQueen filma é extremamente seco, frio, sem ponta de sensualidade, exactamente como Brandon o sente, e isso vai-se adensando ao longo do filme. A música que Harry Escott compôs e a maravilhosa fotografia de Sean Bobbit - já conhecida de Hunger – imprimem relevo e consistência à experiência de absoluto desconforto e inquietude. Há muitos corpos nus no filme, mas o que corre dentro dos personagens nunca é revelado, apenas temos acesso ao exterior, porque não são capazes de dar mais (ou não têm ninguém que os ouça, no caso de Sissy). Quando a irmã comete um acto impetuoso em pedido de socorro (ela que já tinha tentado o suicídio em criança), Brandon chora descontroladamente e encolhe-se no chão, aterrado e desfeito pelo que as suas vidas se tornaram. 
Ainda há quem diga que Shame de vergonha tem pouco, como se o fardo de Brandon (e dos muitos Brandon que existem mundo fora) viesse de uma outra coisa. É a vergonha que o impossibilita de se expressar. O desprezo que sente por si mesmo tornou-se familiar, mas cravou-lhe o vazio na alma e incapacitou-o de criar intimidade com alguém. 
No final, o ciclo não se fecha. Brandon reencontra a mulher que lhe escapou no início, agora completamente disponível, e é utópico pensar que não terá agarrado a oportunidade de abismo.
Michael Fassbender tem um desempenho excepcional. Encarna um personagem tenso, afectivamente desligado, mecânico e intransponível, mas que acaba por se emocionar com a fragilidade da irmã (interpretada por Carey Mulligan), a única mulher que ama e que por isso o aprisiona. Sissy canta uma versão da New York, New York, que nos faz ficar (tão) pequenos no nosso assento: um grande plano da sua cara a dizer a Brandon "I want to be a part of it". É esse o único momento em que realmente falam, escutam, entendem.
Como a Morgana costuma dizer, cada plano de Shame é “poesia em silêncio”. Um drama profundamente humano sobre a discrepância latente entre amor, sexo, comunhão e família, explícito magnificamente na cena em que Brandon assiste à cópula de um casal contra o vidro de um apartamento, num tempo em que a fronteira entre privado e público, real e irreal se esbatem a passos largos, e vivemos todos juntos (n)um grande vazio.

7 comentários:

  1. "poesia em silêncio"? bem, tenho mesmo de ver isto o mais depressa possível!

    Parabéns pelo excelente texto.
    Cumps cinéfilos.

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    1. Meaning; as pessoas falam sempre muito mais com os olhos do que com a boca.
      É um verdadeiro murro no estômago.
      Obrigada e depois diz de tua justiça.

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  2. Grande texto, gostei muito de o ler :).. Sobre o filme pouco resta a acrescentar, uma peça de arte rara e recheada de tanta coisa brilhante, e infelizmente pouco vista! "Shame" para qualquer cinéfilo que não o veja ou vá ver um dia destes eheh :P lol

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  3. Belo texto, muito acertivo.

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