Este ano passou por mim como um
trovão. Não tive realmente tempo ou coragem para ver muitos filmes. Menos ainda
para escrever sobre eles. Mais tarde arrependi-me. Perdi o embalo. As coisas
que tinha a dizer ficaram por aqui soltas, misturadas com outras, e esta plataforma
parece às vezes já não me servir. Isto, claro, são desculpas. Vejo tanta gente
escrever tão bem todos os dias e pergunto-me como conseguem. Como conseguem,
com todas as ideias que têm somadas às ideias que os atacam e que não são deles
e ainda àquelas onde não conseguem chegar. É preciso dedicação. E é preciso
aceitar a solidão da palavra. Este ano dediquei-me a passar a palavra de
outros. A minha não me dava sustento, e assim se foi arrastando para longe.
Quando os outros arranjaram uma boca mais nova e mais barata que passasse a
palavra deles, calaram-me. E então fiquei muda. Sem a deles nem a minha. Um
Homem não é ninguém sem a sua palavra. Eu tinha os meus filmes. E eis que fui
rever os que me ensinaram a ver, a pensar e a escrever. Foi em boa hora que
pude ver na tela O Gosto do Saké, Tokyo Story e Primavera Tardia de Ozu, ou que tive em casa um projector onde vi
filmes do John Ford e do Jarmusch, ou ainda a feira de natal do cinema ideal
onde comprei filmes do Mike Leigh por tuta e meia. Foi também, longe ia o verão,
que vi Aquele querido mês de Agosto e
As praias de Agnès. E se há pessoa
que me inspirou foi ela, que, sem vergonha e com toda a honestidade, diz que
quando tinha uns 26 anos e começou a fazer filmes, tinha visto, por alto, cerca
de 8. 26 anos tenho eu e pensava ser muito tarde para (re)aprender as palavras,
juntá-las e dar-lhes voz. Talvez seja, talvez não. Não é ainda a hora de
descobrir. Com o ano a chegar ao fim, fica o registo dos filmes estreados em
sala de que mais gostei. Com evidente destaque para Like Someone in Love de Abbas Kiarostami, e Io e Te de Bernardo Bertolucci. A seguir, e sem nenhuma ordem que
valha a pena destacar: Frances Ha de
Noah Baumbach, La vie d’Adèle de
Abdellatif Kechiche, Noutro País de
Sang-soo Hong, De rouille et d’os de
Jacques Audiard, La Vénus à la fourrure
de Roman Polanski e The Bling Ring de
Sofia Coppola. Ainda não vi O grande mestre do Wong Kar-wai, mas deixo-vos um
excerto do Happy together que espero
servir de inspiração ao ano que se avizinha. A todos os que ainda me lêem,
e também aos outros, sejam felizes, à vossa maneira, juntos ou separados, se não aqui, no fim do mundo.
antes tentava escrever sobre cinema. agora não sei. quando for grande quero escrever para a pequenada.
domingo, 29 de dezembro de 2013
domingo, 27 de outubro de 2013
Les amants du Pont-Neuf
Dias depois de ver Mauvais
Sang, tive a feliz surpresa de ver Les
amants du Pont-Neuf na festa do cinema francês, com a minha querida amiga e
companheira Rita, que chorou e se assoou todo o tempo. Eu não chorei. Talvez
por ela ter chorado pelas duas, talvez por eu ter chorado mais que a conta no Like someone in love.
Eu fiquei boa parte do tempo a achar que o filme ia
acabar a qualquer momento. Porque podia ter terminado muito antes e seria
igualmente extraordinário. Mas Carax leva-o à exaustão, num tour de force de performances espantoso,
sem o qual podia cair no abismo. Depois do absoluto realismo das
primeiras cenas num abrigo para quem não o tem, alterna entre uma mise-en-scène sabiamente controlada, com
cenas bastante longas, e uma explosão de cores, sons e movimentos de câmara
arrojados e delirantes, num hino ao amor desmedido e louco.
Alex encontra Michèle a dormir nos seus aposentos. Ela
aparece-lhe como uma dádiva, da qual ele decide fazer o sentido da sua vida. Passam a depender um do outro: ele ajuda-a a caminhar por Paris, servindo-lhe
de bengala, ela oferece-lhe companhia à noite, ajudando-o a passar as suas
insónias. O amor é assim uma necessidade, algo a que se agarram para sobreviver.
A relação é tão degradada como a ponte em que vivem, uma fortaleza em colapso
físico e existencial. São egoístas, obsessivos e maquiavélicos.
Alex faz tudo para que Michèle não consiga contactar a sua antiga paixão,
põe o dinheiro que roubaram a jeito para que ela o derrube sobre o rio - com
medo de a perder se saírem daquela ponte - e pega fogo aos cartazes espalhados
pela cidade, preferindo que ela cegue a que se seja operada,
porque só em condições extremas o seu amor é válido.
Ele é prisioneiro da ponte, ela é uma turista
à procura de um escape. Quando finalmente o encontra, não tem problemas em drogar Alex e partir, deixando-lhe uma nota bastante desagradável sobre o
leito do seu amor.
O tempo passa e Michèle vai ao encontro de Alex. Percebemos que está com o médico que a operou, mas não consegue fugir ao fascínio que Alex e a vida que tiveram juntos despertam nela. O perigo, a ansiedade, o amor sem regras, cego e desmesurado. Quando se encontram no natal não há possibilidade de ficarem juntos porque a ponte (como eles) não é a mesma, não é já deles, é agora firme e aberta ao mundo. Ao perceber que não pode ficar com Michèle, Alex atira-os ao rio porque é preferível uma morte à morte do amor. São salvos por um barco (homenagem a L’Atalante e espécie de pré-Titanic), desta vez uma superfície em movimento que os transporta para longe daquele lugar sem nada para lhes oferecer. Decidem partir juntos numa nova aventura, renunciando à vida “normal” que tinham conseguido para si mesmos. Serão sempre os marginalizados lovers on the run que se deixam conduzir por paixões obsessivas, tão prazerosas como sofridas.
O tempo passa e Michèle vai ao encontro de Alex. Percebemos que está com o médico que a operou, mas não consegue fugir ao fascínio que Alex e a vida que tiveram juntos despertam nela. O perigo, a ansiedade, o amor sem regras, cego e desmesurado. Quando se encontram no natal não há possibilidade de ficarem juntos porque a ponte (como eles) não é a mesma, não é já deles, é agora firme e aberta ao mundo. Ao perceber que não pode ficar com Michèle, Alex atira-os ao rio porque é preferível uma morte à morte do amor. São salvos por um barco (homenagem a L’Atalante e espécie de pré-Titanic), desta vez uma superfície em movimento que os transporta para longe daquele lugar sem nada para lhes oferecer. Decidem partir juntos numa nova aventura, renunciando à vida “normal” que tinham conseguido para si mesmos. Serão sempre os marginalizados lovers on the run que se deixam conduzir por paixões obsessivas, tão prazerosas como sofridas.
quinta-feira, 24 de outubro de 2013
Frances Ha
Estes dias tenho-me lembrado
muito da Frances. Fui dispensada das minhas funções e também me disseram que
sou muito boa mas isso não me paga a renda. A Frances é o rosto da minha
geração. Licenciada e disposta a seguir os seus sonhos, passa os dias adiando
decisões inevitáveis e procrastinando no sofá em frente à tv ou ao computador.
Muda de casa como quem muda de peúgas, mas essas ela nunca tira, porque a
melhor amiga que a lembrava disso, a deixou por uma rua melhor. Então ela ficou
perdida porque precisava de alguém que cuidasse dela, porque é uma criança
grande numa das maiores cidades do mundo, ainda assim pequena para a grandeza
das coisas a que se propõe. Frances está longe de se acomodar. Não pára de um
lado para o outro, e ao mesmo tempo passa dias inteiros cheia de projectos que
acaba por não concretizar. Ainda assim, tem uma energia estonteante que
contagia tudo à sua volta e que se manifesta nos movimentos sem jeito e
nas palavras atrapalhadas.
Esta cena (carregar na cena) simboliza o conto de
fadas em que vive. Não é assim tão improvável uma situação destas existir e é
bonito pensar que existe, algures, ou que existiu, um dia. Mas é apenas uma
cena no todo do amor e a longo prazo é uma quimera. Frances acredita que pode
perdurar e nós acreditamos com ela. No final, troca esse olhar cúmplice com a
sua pessoa, Sophie, a melhor amiga que a deixou por uma rua melhor, e depois
pelo homem com quem se casou. Ela decidiu crescer enquanto Frances dava ainda
luta à idade adulta. Foi a Paris com dinheiro que não era seu e deixou-se
dormir o dia todo. Não conseguiu traçar um plano sozinha e ficou à espera de
uma chamada que chegou tarde demais. Foi a casa dos pais no Natal, enganando um
pouco mais a idade. E quando finalmente viu a sua carreira de bailarina caída na
sarjeta, fez o melhor que podia com aquilo que tinha. Aceitou o trabalho de
secretária na companhia e levou ao palco a sua coreografia. Abdicou do sonho e
entregou-se à vida. Quem não tem cão caça com gato. E deu-se bem, melhor que
muitos de nós. Vale a pena tentar, pelo menos. Só temos que deixar a bagunça do
amor e da vida de parte. Frances dança estes tempos modernos com uma leveza inspiradora.
Obrigada a ela e a ela, Greta, e ao Noah. Amanhã vou à procura de um novo trabalho.
sábado, 19 de outubro de 2013
Io e Te
Na passada semana fui, sem grandes expectativas, ver
o Io e Te. Tinha ficado com uma
ideia um bocado chata depois de ver o trailer. Estupidez
minha. Bertolucci pega nos dois jovens - um enterrado a fundo no
desconforto da puberdade, outra a arrancar os últimos bocados de uma
extravagante e decadente adolescência que se prolonga pela casa dos 20 - e
encerra-os numa cave bafienta, recheada de antiguidades, cenário idílico como
exercício de estilo de uma requintada decadência. Decadentes são também as suas
vidas, uma física, outra moralmente. À medida que o espaço vai ganhando forma,
eles também se vão erguendo. Porque às vezes é preciso cair no fundo para nos
levantarmos. O miúdo não quer ser incomodado durante uma semana e trata de tudo
para ficar sozinho e tranquilo, mas a meia-irmã entra-lhe por ali adentro e,
dado o seu estado, ele não tem outro remédio que não aprender a cuidar e a
estar com alguém. Com ela, experiencia o que é sentir-se ligado a outro ser
humano. Olivia vem dar vida e explorar o potencial da cave, ajudando Lorenzo a
sair do buraco em que se enclausurou para se sentir livre e seguro. O desafio é
fazer essa sensação perdurar fora de grades. Ela foi ensiná-lo a crescer, mas
fá-lo de forma bastante passiva. É o miúdo que trata dela e a ajuda, ao deparar
com uma realidade completamente desconhecida. E nessa tenra idade sentimo-nos
importantes quando somos úteis e fazemos coisas pelos outros. Lorenzo fez tudo
o que podia pela irmã e a sua devoção foi retribuída com o amor que precisava
para acalmar o seu espírito tumultuoso. Há uma aura constante de
sensualidade a pairar no ar. Olivia é uma deusa rebelde, e a sua beleza -
dissecada à lupa pelo rapaz - serve como objecto de idolatração. Ela não é um
modelo a seguir, mas alguém com uma experiência que ele não tem, que lhe mostra
que a vida são dois dias e que as crises existenciais têm de acabar num deles.
A escolha é dele. E dela. Quando, inocentemente, Lorenzo lhe dá os cigarros com
a droga lá dentro, Olivia deixa de poder encerrar ali os seus problemas.
Leva-os consigo e terá ou não coragem para resistir à tentação da maçã
proibida. A cena em que Tea Falco dança a Ragazzo Solo, Ragazza Sola do Bowie é a mais bela do filme. A
letra é a narrativa. É nesse momento que a aura de sensualidade cai e dá lugar
a um abraço fraterno.
Eu chorei quando o filme
acabou. Fui em crescendo com ele, largando as amarras e deixando as emoções
eclodir pela sala escura. Eu lembrei-me que já fui os dois irmãos e senti uma
certa nostalgia de um tempo cheio de agitações e incertezas, de amores e
desencontros. Passados mais de 15 anos desde Stealing Beauty, Bertolucci não perdeu o tacto, mas eu perdi a
idade da inocência e a bagagem é uma coisa pesada.
sexta-feira, 4 de outubro de 2013
ainda Kiarostami. assim é o amor.
Decorrida uma semana, Like someone in love continua tão presente
que não consigo ver outro filme. Também não consigo sair à rua e lidar com o
sol a arder sem glória, amolecido pelo temporal que se colou à pele e a fez
suar as vísceras. O sol veio dizer adeus e não gosto de despedidas.
Por falar nisso, esta semana vi o episódio final de Breaking
Bad, que seria óptimo, se tivesse terminado mais cedo. Já para não mencionar o
de Dexter, que foi assim a banhada total. Daí continuar a aplaudir Kiarostami,
que não se lembrando de mais nada, parou o filme ali e pronto. Gosto de finais
que deixem as coisas a arder, que não resolvam nada, que deixem a história/o
mundo em aberto.
Também esta semana, uma amiga dizia-me que um filme vale
somente pela história e que lhe cansam os críticos que “perdem tempo” a falar
da mise-en-scène, dos planos e “do resto”. Pois eu podia ficar horas a falar de
planos. É tão belo o filme contar histórias através deles, deixar-se guiar sem
um fim. Foram os planos que me fizeram ficar embasbacada com Breaking Bad,
porque aquilo é coisa de cinema e é preciso um gajo arriscar a sério para fazer
uma série assim.
Kiarostami não interfere com a vida que lhe entra pela
câmara. Não conta a história, deixa a história contar-se. Uma história universal
que é dele e de cada um de nós. Já todos fomos Akiko, à procura de algo e a
tentar esconder o algo que somos de outro. Ou o namorado ciumento e obsessivo
que sabe estar a ser enganado. Ou mesmo a vizinha com quem noutra altura nos
podíamos ter cruzado e agora é tarde. Só não fomos a avó, por falta de filhos com
que nos preocupar, ou Takashi, por força da tenra idade e de dias por viver.
Na cena no carro entre Takashi e o namorado, o mais velho parece conter em si todo o
conhecimento. Mas nunca diz nada específico, apenas solta linhas condutoras. When you know you will be lied to, it’s better not to ask. Não foi por
falta de aviso que o namorado se deixou ser aldrabado. Continuou ali, preso num
cubículo com um estranho, a tentar ser bem educado, a explicar as razões
pelas quais quer casar com Akiko, todas ao lado, e não sabemos se está
apaixonado ou obcecado por ganhar a batalha do amor. Ele não quer deixar que
ela Seja, quer moldá-la a seu gosto. Mas não quererá Takashi o mesmo?
Kiarostami não quer moldar nada. Deixa que uma transeunte,
que passa duas vezes com crianças vestidas de bruxas, fique confusa com o carro
que sai do estacionamento e se ponha a olhar em todas as direcções. Dá tempo a
Takashi para descer as escadas do prédio, deixa-o adormecer durante o sinal
vermelho e que o trânsito interfira quando vai buscar Akiko, tendo de fazer
inúmeras manobras até conseguir chegar a ela.
Todos eles (e todos nós) trocam impressões e expressões de
amor, como quem está apaixonado. assim é o amor, uma estupidez intermitente
mas universal, já dizia o valter.
domingo, 29 de setembro de 2013
Like someone in love
When you know
you will be lied to, it’s better not to ask.
Foram precisas três vezes para conseguir ver
o novo filme do Kiarostami de uma ponta a outra, facto que não é inédito na
minha relação com os seus filmes. A primeira vez que tentei foi especialmente
dura, logo na cena inicial filmada sobre uma claustrofobia exasperante que
luta por agarrar a rapariga. Os figurantes parece que vão ali ficar para
sempre, e ela apenas sai para dentro de um táxi. É neste ambiente que somos apresentados
a Akiko, antes mesmo de lhe conhecermos o rosto. Ao telefone, mente passiva e
descaradamente ao namorado desconfiado. Queixa-se ao patrão que tem exame no
dia seguinte, não podendo por isso trabalhar nessa noite, para além de ainda
ter a avó à sua espera. Mas desde o início que a decisão está tomada, de outro
modo não estaria ali e sim a estudar. Ter trabalho marcado para essa noite é a
desculpa que dá a si mesma para não ter de se justificar perante a avó. Akiko
está sempre impávida e nunca sabemos bem quais os seus verdadeiros sentimentos.
Quando se exalta no bar, a câmara não a filma, voltando a ela quando já está
serena. Quando, mais à frente, discute com o namorado à entrada da faculdade, mal
a ouvimos. Ainda na cena inicial, tem o cuidado de pedir o batom à amiga, que
coloca no fim de ouvir as comoventes mensagens que a avó lhe deixou durante
todo o dia que passou à espera dela na estação de comboios, por entre as quais
lhe diz: “She looks like you but she
doesn’t”. Habituada a representar diferentes personas de noite, conforme o trabalho a obriga, Akiko não sabe em
que persona se encaixar. Ver a avó é
porventura voltar à pessoa que era há dois anos atrás, antes de entrar em
Tóquio. Não sabemos bem por que está a estudar, pois parece pouco interessada,
não respondendo correctamente a uma pergunta simples do exame. Não sabemos se
gosta do namorado ou do que gosta nele, nem ela própria sabe. Anda ali à
deriva, a tentar ser alguém. Alguém como a rapariga do quadro, a filha ou a
mulher de Takashi.
Foi mais ou menos por esta altura que tive de
parar. A capacidade que a avó tem de colocar doçura em todas as palavras, quando
o que sente é desespero, a sua silhueta, ao longe, rodando a cabeça em todas as
direcções à procura da neta, ainda com um fio de esperança, estilhaçou-me o
coração.
Dias depois, reiniciei-o e consegui ir até ao
vulto de Akiko reflectido no espelho do quarto de Takashi, um vulto esfumado
como alguém que não conhecemos ou como uma aguarela que desaparece com a chuva.
O desconforto de Takashi é estupidamente bem conseguido para um actor
não-profissional. Ao contrário dela, ele não sabe como se comportar numa
situação destas, ou sequer o que quer daquela miúda. Acaba por se sentir
envergonhado por entrar para a contagem dos homens que a oprimem e a afastam da
busca interior que deixou suspensa, não conseguindo encaixar em nenhum lugar.
Assim sendo, o melhor que Takashi pode fazer é tomar conta dela e ajudá-la a
descobrir-se. Ser a avó que ela rejeitou. Claro que as suas boas intenções caem
por terra quando confrontadas com o namorado de Akiko, o único personagem que
se comporta como os sentimentos ditam e que sabe o que quer, ainda que pelos
motivos errados.
Nisto já eu ia na terceira tentativa, que foi
definitiva e terminou abruptamente, com o micro-ondas a dar o sinal de alarme.
Cheguei ao fim de coração acelerado e não consigo pensar num final melhor que
aquele. E quem diz final, diz princípio e meio. Kiarostami é daqueles
realizadores que não precisa de palavras para se expressar. Podia ver os seus
personagens a passear de carro por uma qualquer cidade durante horas, observando
no vidro o reflexo dos lugares por onde passavam, as nuvens no céu, os
semáforos. Kiarostami não precisa de dizer nada porque está lá tudo. A
personagem mais querida do filme é a avó e nem lhe conhecemos o rosto. É a que mais
se esforça por conseguir entrar, com cuidado e delicadeza, a que fala sem obter
resposta. Kiarostami não precisa de um rosto, quando tem uma voz. O contrário,
claro, também se verifica. Akiko pouco se manifesta porque a sua expressão fala
por si. O professor é ao mesmo tempo apaziguador e catalisador de revolta.
Tentando proporcionar um equilíbrio ao jovem casal e a cada um individualmente,
é sacrificado por se envolver num amor que não é seu, porque estava sozinho e
queria companhia, porque se sentiu culpado, porque tentou ser peixe e carne.
Preciso de tempo extra para dedicar a
Kiarostami. Ele faz-nos ver a vida quando não estamos preparados. É um dos meus
realizadores vivos preferidos e não consigo falar sobre ele porque o amo. As
coisas que amo, eu só olho e qualquer palavra não quer dizer nada. Não tinha em
mente escrever e sinto-me até envergonhada por o ter feito, tão pequena sou
perante ele e a vida. Mas é domingo à noite e estou sozinha em casa, como
alguém que finge estar apaixonado pela chuva, quando a roupa não seca e as
camisas brancas não nascem nos cabides.
sábado, 24 de agosto de 2013
the bling ring
foi preciso vir aí a sofia coppola para eu actualizar este inanimado blog. e se a desculpa do "não tenho tempo" não é mentira nenhuma, menos não é a de que a preguiça vai esticando e ganha assento oficial.
a sofia, essa, é que não se sentou à sombra da bananeira, e pegou na história mais oca possível e atirou à cara de quem quer ver que é capaz de fazer um filme tão belo quanto quiser com o tema que bem lhe apetecer. a sua forma é única e com ela jamais se poderá dar mal.
estes miúdos são uns solitários, uns fora-da-lei, que roubam pelo prazer e não tanto pelo poder. sofia oferece-lhes um mundo próprio onde encaixam como reis, com o necessário distanciamento do real. eles fazem parte do sonho, da liberdade que advém do desconhecimento. depois há a outra parte, em que documenta mais criticamente, sem nunca roçar o agressivo, antes dando-lhe um tom cómico, como a paris hilton deixar as chaves de casa debaixo do tapete e depois a miúda querer levar-lhe o cão ou um dos miúdos do gang congratular-se com a quantidade de pedidos de amizade que tem no facebook. nenhum deles tem noção do que fez, das consequências, do que é a privacidade. são uma juventude perdida nos sonhos que hollywood lhes vendeu. a sua ingenuidade é quase comovente, a forma como falam e como se "defendem" perante as circunstâncias.
para a sofia, nota 10.
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