quinta-feira, 28 de maio de 2020

O SANGUE

quando for grande quero:

- que as ginecologistas, mulheres e homens, não nos receitem a pílula quando lá vamos com 16 anos explicar que há 3 que não menstruamos, quando o problema é claramente outro e tem nome de doença e a pílula não o vai curar, apenas esconder e menosprezar;

- que as meninas não sejam gozadas na escola primária por terem de andar com pensos higiénicos escondidos no bolso com 9 anos de idade;

- que a educação menstrual e sexual comece na escola primária porque há meninas a menstruar com 9 anos de idade;

- que os homens não digam que o sangue menstrual é nojento e também que não achem que, por estarmos menstruadas e querermos ter sexo sem preservativo, somos receptoras de esperma sem consentimento;

- que os pensos higiénicos e os tampões bio sejam distribuídos gratuitamente nos centros de saúde, nas ruas e nas escolas;

- que possamos faltar à escola e ao trabalho por dores excruciantes ou quantidades avassaladoras de sangue, tenhamos as faltas justificadas e recebamos os dias por completo;

- que se veja sangue menstrual na publicidade, nas novelas, nas séries e nos filmes;

- que um dia falar de sangue menstrual não seja mais assunto e que quando explicar como era no antigamente às minhas filhas, elas me digam que já estão fartas de ouvir a mesma conversa e que os tempos mudaram. que me sinta velha por ter vivido algo tão longe do universo delas que elas nem conseguem imaginar! vamos em frente que somos muitas, temos pressa e mais que fazer!

obrigada, Tota!

O Meu Sangue, Tota Alves



dias de paraíso

domingo fomos ao campo. atravessámos a ponte muito cedo para a margem sul. as primas já brincavam na piscina que a tia montou debaixo da oliveira. a tia fazia de tubarão martelo e de thorpedo ao mesmo tempo. a prima pediu à tia para secar o cabelo da barbie primeiro. o dela não que ela não gosta. e de cabelos molhados fomos às laranjas às cavalitas da mãe e enchemos dois sacos para fazer sumo. no caminho comemos as últimas nêsperas e apanhámos folhas de couve para dar aos dois cavalinhos nossos vizinhos, só que eles não quiseram porque estavam a mamar. leite é melhor que couves. as videiras já têm uvas bebés. temos de esperar até setembro para as comermos, mas pusemos umas à boca na mesma e fizemos muitas caretas. vimos os alhos e as cebolas que estão quase boas disse o pai. a água do poço também subiu. regámos as courgettes e os tomates mas eu não gosto de tomate. apanhámos cidreira, lúcia-lima, erva príncipe e hortelã. a cozinha do tio cheira sempre a hortelã. cheira bem, mas sabe mal. o pai diz que os gostos mudam, mas eu nunca vou gostar de tomate! à tarde andámos de bicicleta e tirámos os caracóis da estrada. vimos muitas borboletas! não queria vir-me embora, mas temos de ir. no caminho de volta adormeci a olhar para os riscos brancos no céu que são nuvens que saíram de casa sem tomar o pequeno-almoço. quando acordei, já estava na cama. pai, lê-me uma história. ele leu.



era número 48 a casa amarela 
uma escadinha e uma árvore 
bem pequena na varanda 
que de vez em quando dava jabuticaba 
tão mirrada que nem em faz de conta a gente 
sentia gosto de fruta 
todo dia era dezembro na rua 
miguel pereira mesmo quando chovia mesmo 
naquele dia do tombo 
de patinete o meu grito ecoando 
e o seu espanto até quando a gente 
discordava da cor de certas tardes ou quando 
aprendeu junto a deslizar nas bicicletas 
alguma coisa sempre escurecia 
de noite uma vontade de ficar um pouco mais 
os carros dos pais que chegavam 
como besouros lentos e gordos 
os carros que não deviam 
não podiam

- pai, estás outra vez a ler histórias para ti?

o pai diz que no fim-de-semana vamos outra vez ver as primas porque elas fazem anos e que podemos arrancar as cebolas. perguntou-me se lhes queria dar um livro e mostrou-me muitos no computador. fiquei muito indecisa mas depois vi este e gostei do caracol porque eu e as primas vimos muitos caracóis!


no fim-de-semana já podemos investigar as borboletas e as flores e anotar as nossas descobertas. e depois podemos ilustrar as folhas e agrafá-las e fazer uma capa e dar-lhes um nome! as grandes descobertas cientifico-naturais das primas em Sarilhos Pequenos!

segunda acordei com um grande escaldão. pensava que os escaldões só se apanhavam na praia. afinal não!

terça-feira, 26 de maio de 2020

quadras suburbanas

manjerico da Joana Estrela



perguntei se podia ir à biblioteca contigo mas a tua avó Rita disse que estavas de castigo. não te preocupes que quando for ministra da educação essa brincadeira vai de carrinho de mão. mas agora mesmo queria era ir namorar contigo para trás do pavilhão gimnodesportivo. já fui ao parque central e fiquei a fazer filmes à frente da escola de cinema mas o que eu queria mesmo era ir rebolar contigo para os jardins da Alameda. achas que sou do Restelo porque não sabes que sou da Reboleira e que o seara é um café na Falagueira. sou muito melhor que tu a história e geografia da periferia. por isso ligaste o gps e foste encontrar-me à Brandoa que já nem o autocorretor reconhece. e enquanto os nossos olhos faziam kamehame perguntaste se podias levar-me a jantar ao Vietname.

sábado, 23 de maio de 2020

Janela Indiscreta

ontem a mãe deixou-me ir ver livros. pus a máscara e corri pelas escadas acima mas parei logo no 1.º Direito a olhar para a menina à janela.



antes de voltar ao Godard, pensei trocar-lhe o nome para 3.º Direito, mas depois não consegui. folheei o livro da menina à janela rápido, porque a máscara fazia muita comichão, mas tive uma ideia para a minha composição! este fim-de-semana temos de escrever sobre a casa. eu sou como a Graça, também gosto muito de observar pessoas. há até pessoas que não vejo, mas escuto. por exemplo, hoje acordei com a mãe da Margarida a gritar com ela. gritava muito e depois ainda veio o pai gritar mais. a Margarida começou a chorar e eu já tinha o coração a bater rápido com tantos gritos. depois há a Matilde que mora no prédio em frente. como me mudei há pouco tempo, ainda não a conheço, mas já sei como se chama. Matiiiiiiilde! vai vestir o casaco, Matiiiiiiilde! grita-lhe a mãe e depois vem o pai para o irmão da Matilde ó, filho, então tu não vês a tua irmã? isto aqui é a Venteira e está sempre vento. a mãe e o pai da Matilde têm medo de constipações. no 4º andar do prédio da Matilde, vive um menino mais velho que não nos liga nenhuma. faz festinhas ao cão. o cão passa muito tempo à varanda, mas às vezes também passa tempo lá dentro e dorme sempre lá dentro. também lá vive uma gata que é muito amiga do cão. no 1º andar estão sempre pessoas diferentes e uma senhora sempre a limpar. limpa de máscara e de luvas e deixa sempre os lençóis brancos no estendal. no 2º andar do prédio da Matilde, vivem duas namoradas e dois namorados. 4 pessoas. uma delas faz ginástica todos os dias. têm uma televisão muito grande e vêem a sic.

as casas são todas diferentes e os lugares das casas também são diferentes. por exemplo, há terrenos que são só para casas. aprendi isto no outro dia com a mãe. entre um prédio e outro, havia um terreno com muitas ervas e eu disse
- mãe, olha aqui, um terreno! podemos fazer uma horta! 
- este terreno é para construir um prédio. 
mas por que não pode ser uma horta? 
- porque é muito caro para pôr aí umas couves.

depois comecei a olhar para os prédios e a perceber como o sol se ia embora mais cedo de uns andares que de outros e depois comecei a pensar e a pensar... da sub-cave ao sótão, há rés-do-chão com terraços e há janelas grandes e janelas pequenas. há até janelas que são duas portas que dão para varandas. há estúdios e há águas-furtadas. há casas de tijolo e casas de plástico. chamam-se tendas. há casas de cartão que não sei como se chamam. há casas umas em cima de outras e pessoas umas em cima de outras. há casas com frigorífico e casa de banho e há casas sem água nem luz. há casas de campo e casas de praia e há casas de banco de paragem de autocarro. há casas com cães e casas com gatas e há casas caras e casas com baratas. há casas que já não são casas nem são nada. dizem que vão ser condomínios de luxo. 
- mãe, o que é luxo? 
- luxo é isso que você está vendo.

a Adília Lopes diz que no Céu há muitas moradas. na terra também. isto foi a minha composição sobre a casa. caras casas, quem vê casas, não vê casarões.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Você sabe com quem está falando?

a pergunta surge no livro da Lilia Moritz Schwarcz Sobre o Autoritarismo Brasileiro - uma breve história de cinco séculos, sobre o qual ela falou ao ípsilon há umas semanas.



a frase lembrou-me um episódio passado há uns anos no ginásio clube português, ai não, afinal foi no ginásio de uma muito nobre instituição do nosso querido tugal em que estava eu, outra funcionária e o treinador. nisto desce-me o período e pergunto à colega que ainda não conheço por ser novata se tem um tampão, ao que ela me responde sabe com quem está a falar? nesse dia aprendi que a verticalidade não se perde nem quando estamos agachadas a fazer flexões, desprovidas de indumentárias que nos distingam, e que os anúncios da evax estavam a comunicar tão bem que aquela coisa do sangue azul lhe tinha subido à cabeça. perante tão excelso cartão de visita, só me ocorreu perguntar-lhe não me diga que usa moon cup? hoje desceu-me o período e ao pegar no ípsilon lembrei-me novamente deste episódio tão fairtrade

uns anos mais tarde, vinha a descer a Rua da Politécnica quando senti que me descia o período. entrei na Cister e perguntei se podia ir à casa de banho. depois de confirmar o meu sentimento, encaminhei-me a uma mesa onde várias mulheres conversavam e pedi-lhes um tampão ou um penso e quase todas enfiaram de imediato a mão à mala. saí de lá fina y segura e fui descansada da vida ler o caderno vermelho da rapariga karateka da Ana Pessoa com bonecada do Bernardo P. Carvalho para a Estrela porque às vezes também me dão laivos de realeza. 



a parte do fina y segura é a gozar. fui mas é toda curvada e com uma ganda moínha.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

uma segunda juventude

o meu pai diz que eu devia era ir estudar alemão em vez de estar toda a semana a ler o mesmo jornal. yeah? well, you know, that's just like, your opinion, man. mas se calhar ele tem razão. eu devia era ir estudar alemão, só que não me apetece nada. só me apetece ler o jornal, sublinhar, fazer círculos em nomes, chatear-me quando leio coisas com que não concordo nada, escrever qualquer coisa numa das folhas sobre x que me fez lembrar de y e assim por diante. adoro comparações. se calhar devia era ir estudar literatura comparada em vez de alemão. só que devem ser só livros chatos. ao menos as línguas aprendem-se com livros infantis. no outro dia aprendi imenso com um livro de uma criança de 2 anos. a Lúcia ensinou-me a minha palavra preferida em alemão, Spielplatz! tinha uma boa resposta para o meu pai. era assim: e tu devias era ir estudar latim em vez de estares toda a semana a ler o mesmo livro! já sei como se chama o livro, Alegria Breve. mas ainda bem que não respondi porque ele acabou o livro e ainda foi estudar latim e eu continuei a ler o mesmo jornal. a minha mãe sempre me disse: não respondas!



terça-feira, 19 de maio de 2020

Aqui é um bom lugar

E a ti, o que te faz sentir em casa? 

a pergunta surge na exposição digital O que há neste lugar? do Museu da Paisagem, em diálogo com o livro O que há neste lugar? Guia de exploração da paisagem da Maria Manuel Pedrosa e da Joana Estrela, que eu ainda não li, mas com que vou namorando pela internet. 




durante esta visita guiada, lembrei-me de uma bela paisagem que vi, ainda em Berlim, ia já março a findar. caminhava sem pressa pela rua longa e larga que foi casa de sol e de solitude, ainda a sorrir por causa das macacas desenhadas no chão pelas crianças, uma a giz rosa, pequenininha, outra a giz amarelo, onde o meu pé ocupava exactamente a área de um quadrado, quando reparo numa senhora de risco ao meio e camisa preta a almoçar à janela. o sol do meio-dia ilumina-lhe a testa e o cabelo cinzento muito bem penteado. ela olhará para o prato. nunca olha para mim. nesse dia tive pena de não ter um telemóvel com câmara fotográfica e de não saber desenhar como a Joana Estrela. escrevi no caderno: hoje vi a paisagem mais bonita do mundo e lembrei-me das palavras da Sophia. A beleza não é um luxo para estetas privilegiados, não é um ornamento, a beleza não é para estar nos salões nem nos palácios. A beleza é para estar na rua e na casa de cada um. naquele dia a beleza estava naquele rés-do-chão da Gräfenbachstraße ao meio-dia. 




nesta entrevista, a Sophia diz coisas muito interessantes sobre educação, cultura literária e cultura plástica e livros para crianças, que são livros de que gosto muito. há um, já não para crianças, mas para jovens, escrito pela Ana Pessoa e ilustrado pela Joana Estrela, que se chama Aqui é um bom lugar




dentro do livro, a frase aparece numa página com um desenho que se parece com o Aduela. é bom ver lugares que conhecemos representados em livros. e faz sentido porque a Joana vive no Porto. já a Ana vive em Bruxelas e não sei se foi lá que passou por um café chamado Aqui. talvez o café se chame Ici. hoje sentei-me num banco do Parque Central da Amadora e pensei, aqui é um bom lugar. a Ana dedica o livro aos meus pais, que fazem da vida um bom lugar. há um par de semanas, o Gonçalo M. Tavares escrevia no seu diário, a casa de partida é a casa dos pais. mas por agora, aqui é um bom lugar. no livro, há ainda referência a um livro do Vergílio Ferreira chamado "Até ao fim". o meu pai anda a ler um livro do Vergílio Ferreira, mas não se chama assim. o personagem principal é um professor. o Vergílio também era professor. há uma escola em Carnide que tem o nome dele. uma vez fui lá ler uma composição a propósito de um concurso de escrita. já não sei sobre o que era, mas recordo-me que estava nervosa. não gosto de falar em público. não gosto especialmente de falar, mas gosto muito de escrever. do Vergílio só li aquele que era obrigatório na escola, "aparição". foi o meu preferido de entre aqueles que tínhamos de ler, "Memorial do Convento" e "Os Maias". de qualquer modo, sei como acaba o "Até ao fim". é assim: a vida inteira dentro de mim. dois livros com o mesmo fim!