quinta-feira, 17 de setembro de 2020

cinema paraíso

 



nos últimos tempos tenho pensado em voz alta e em conjunto em possíveis trabalhos de vida. às tantas veio à baila a profissão de projecionista e eu pensei uau deve ser fixe passar o dia a ver filmes numa sala escura sem ninguém pra te chatear a cabeça barra foder o juízo. hoje de manhã uma moça na antena 1 dizia fulano é a uma excelente pessoa barra artista. então fui pesquisar sobre a profissão e falei com algumas pessoas. a inês diz que estamos no máximo a cinco pessoas de chegar a outra pessoa. sem saber eu estava a uma barra duas pessoas de chegar a uma projecionista. mas não cheguei a chegar porque chegou alguém que disse isso já não é profissão. a maior parte das projeções são em cópia digital. fez sentido. por isso é que não encontrei nenhum curso de projecionista e fui à carris ver se tinham vagas para motorista.

logo vou ao cinema ver os sete samurais do kurosawa. 
cópia digital restaurada.

sábado, 15 de agosto de 2020

clube da esquina



ontem foi dia um de julho o dia em que a Amália fez cem anos o dia em que a Matilde anunciou o Flecha e em que devido à covid-19 a nadadora-salvadora anunciou não é permitido jogar raquetes na praia e eu morri na areia o dia em que adormecemos no carro a escutar canções de verão e em que sem olhar o calendário vi descer a menstruação o dia em que fez exactamente oitenta e quatro dias que aterrei aqui na terra e me sentei no boteco sentindo saudade de uma esquina só.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

call me by your name



é tudo por tua causa. que comecei a usar boné, que me encantei pelo rapaz que disse o teu nome na praia, que encho a cara toda de azul, que ando a assapar na estrada de bicicleta, que assobio canções desconhecidas, que fiz conta no instagram, que deixei crescer o cabelo, que aprendi a jogar setas, que corro atrás do céu, que ando de coração flechado, que minto, que não te adiciono no facebook, que entro na rua de olhos abertos, que estou desperta, à espera do dia em que, por alguma razão, vou estar sentada num banco só a olhar para a frente e à minha frente tu vais passar e eu vou 

dizer o teu nome.



domingo, 19 de julho de 2020

match point

fizemos a viagem toda ao som do concerto do Nick Cave em Berlim. vimos fotografias dele e da Polly Jean. vimos o sol pôr-se sobre Alcácer. a fila para entrar na ponte. um carro igual ao nosso a fazer-nos sinal. a rádio a falhar. uma cassete a rodar. e


TUM 
atenção moçada
i knew these people these two people 
às vezes, no simples se relacionar com um jardinheiro você aprende mais que lendo marx 
no me llevo ni una sola gota de veneno 
TUM TUM TUM TUM 

i'm riding in your car you turn on the radio 



domingo é dia de pingue pongue
para lá e para cá, todas as noites de verão, a rasgar estrada contigo.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Um peixe fora de água

no meu primeiro dia na Seomara da Costa Primo, estava na fila para comprar as senhas para a cantina, quando senti a tua mão a dar-me dois toques no ombro: 

- és menino ou menina? 

na semana seguinte perguntaste-me se queria namorar contigo.

- talvez.

dias mais tarde demos um linguado atrás do pavilhão. foi o meu primeiro linguado. não sei se foi o teu. eras mais velho. eras despachado. enfiaste a língua toda na minha boca, às pressas, sem saber onde ias. de repente fiquei enjoada. quis ir-me embora.

- onde é que vais?
- vou para casa.

eu sabia onde ia. eu não ia a pensar em ti no caminho para casa. eu ia a pensar no joão da natação e em como preferia que o meu primeiro linguado tivesse sido com o joão da natação, de baixo de água, depois de um mergulho. o joão da natação numa ponta da piscina e eu na outra ponta da piscina. um beijo molhado, demorado, de baixo de água. a piscina toda nossa. os nossos rostos molhados, fora de água, a olharem um para o outro. os nossos cabelos molhados, as nossas pestanas molhadas, iluminadas pelas luzes da piscina. 

em casa lavei a língua com sabonete feno, escovei os dentes e em frente ao espelho prometi nunca mais te dar linguados.

peguei numa caneta e num papel escrevi:

joão da natação, queres namorar comigo?

sim
não
talvez

Mary John

livro recomendado pelo PNL, para maiores de 14

carrega no título e verifica a sua disponibilidade na Rede de Bibliotecas de Lisboa


quarta-feira, 17 de junho de 2020

As Virgens Suicidas

há filmes que nos marcam muito numa dada altura das nossas vidas. a essa altura chamamos crescimento. antes de ser crescida, já era alta e estava convencida de que por isso me deixavam entrar nos filmes para pessoas crescidas. o primeiro filme para pessoas crescidas que vi no cinema e me marcou foi As Virgens Suicidas. o Tubarão também me marcou, mas de medo. fiquei a achar que ia aparecer a qualquer momento no mar do Algarve e comer o meu pai que na altura nadava tipo Katie Ledecky todos os verões da minha infância. vi As Virgens Suicidas no D. Pedro III, em Queluz. o filme estreou em Portugal no dia 16 de junho do ano 2000 e era para maiores de 16. eu estava a iniciar o meu décimo segundo verão de experiência. passado uns meses, o cinema do D. Pedro III fechou e tive de passar a ir ao Babilónia, na Amadora, que, passados outros tantos meses, fechou também. aí deixei de estar convencida que me deixavam entrar por ser alta. deixei também de ir ao cinema e recomecei as aulas de natação nas pisicnas da Reboleira. passados 20 anos, a cidade onde se encontra a Escola Superior de Teatro e Cinema ainda não tem um cinema. já lá vão uns anos, mas penso que o que ainda existe é o Cineteatro D. João V, na Damaia. não tem uma programação de cinema. nos Recreios da Amadora, também não vi nada. era fixe mudarmos isso. é fixe pôr duas cadeiras à frente do boteco e ficar a ver passar o fim de um dia qualquer, mas às vezes também é fixe não estar sempre no improviso. arranjarmo-nos, convidar alguém, ir ao cinema. 


quarta-feira, 10 de junho de 2020

terra estrangeira

um agente da PSP virou-se para um rapaz negro que falava espanhol e francês e gritou-lhe "fala português!".

um professor universitário virou-se para uma aluna branca que falava português do Brasil e disse-lhe "fala português". 

a PSP só "defende" quem é brancx, ups, quem fala português.

o professor universitário só compreende quem fala francês, ups, inglês, ups, português de Portugal. o professor compreende, mas prefere fazer que não compreende. o professor exerce uma relação de violência e não de troca de experiência. depois do que aprendeu na escola sobre Portugal e o Brasil, o professor universitário nunca mais refletiu sobre o assunto e acha-se no direito de não compreender outro português que não "o seu".

o professor universitário aprendeu que o português é só um, o que se aprende nas escolas portuguesas e mais nenhum. ó, senhor professor, a língua é um organismo vivo. vive dentro e fora da boca, vive em outras bocas e em outros corpos, adapta-se ao clima, ao mar salgado e à linguagem. a língua não pertence a ninguém, é dona de si e anda sempre a vadiar. saudosismo não cabe em mala de cabine.

em vez do amor aos lusíadas, era mais fixe começar-se a ler na escola, por exemplo, autorxs brasileirxs, para xs miúdxs se irem familiarizando com outras formas de falar português, ao mesmo tempo que se lhes abre uma outra visão da História.

e dois livros para as férias grandes:

vai, Brasil
deus-dará

carrega nos títulos e verifica a disponibilidade dos livros na Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos, na Amadora. 

segunda-feira, 8 de junho de 2020

ainda a respeito da violência

fiz o 1º ciclo do ensino básico num colégio de bem, em Benfica. a mãe trabalhava lá desde os 17 anos, o que me deu free pass para receber a educação dxs ricxs, digamos, deu-me um golden card. nunca podia fazer asneiras como as outras crianças ou dava castigo na certa. uma vez a teacher pôs-me na rua. escondi-me atrás de um armário e chorei com medo que a mãe me visse, já a pensar no castigo que aí vinha. não me faças passar vergonhas dizia. mas fiz. algumas. ainda assim, safei-me. o Nuno não teve a mesma sorte. quando a teacher me pôs na rua, o Nuno já não estava lá para o testemunhar. aos 7 anos, no fim da 2ª classe, foi dispensado da escola. o Nuno é uma criança violenta diziam. o Nuno não era filho de nenhuma funcionária. o pai do Nuno tinha dinheiro, mas o dinheiro não conseguiu dar ao Nuno um lugar no colégio dxs meninxs brancxs, ups, ricxs. o racismo não está à venda e em 95 aprendia-se na cartilha.

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em 97 chorei bué por a mãe não me deixar ir para a E.B.2/3 de Benfica para onde iam todxs xs colegas da 4ª classe e por me obrigar a ir para a escola da Amadora, mais perto de casa. antes do meu 1º dia na D. Francisco Manuel de Melo, a mãe teve uma conversa comigo sobre oferecerem-me droga. nunca ninguém me ofereceu droga, tive sempre de a comprar às escondidas do contínuo, um retornado, ups, reformado da PSP, que fazia ali um biscate. o racismo está seguro e em 97 era mantido nas escolas da periferia pela boa ordem de ex polícias da PSP.

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em 2002, na Seomara da Costa Primo, tive a primeira e única professora negra em todo o meu percurso escolar e académico. nessa altura já a turma se constituía maioritariamente por alunxs brancxs porque xs alunxs não-brancxs tinham sido encaminhadxs para o ensino profissional. o racismo institucional existe e em 2020 ainda debatemos quotas étnico-raciais.

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com o homicídio de George Floyd e a covid no Bairro da Jamaica, o país trouxe novamente à tona o seu calcanhar de Aquiles. sobre o homicídio de Georges Floyd: "se fosse branco não davam tanto protagonismo à notícia". sobre o bairro da Jamaica: elxs não pensam, têm de ser ensinadxs". "elxs", "xs outrxs", "têm de ser ensinadxs", o que sugere a irracionalidade e incapacidade da gestão das suas vidas. é o discurso colonialista do bom português civilizador que ainda hoje se (re)produz nos manuais escolares e nos almoços de família de domingo. o racismo estrutural existe. a segregação existe e subsiste na arquitetura e no pensamento. o racismo institucional está diretamente ligado à segregação residencial que nos finais dos anos 90 e inícios dos anos 00 afastou muitxs jovens da minha escola.

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a escola tem de ser inclusiva. a escola tem de ser representativa. a escola tem de desconstruir e reconstruir a História, tem de descolonizar o conhecimento. a escola tem de mudar. a começar pelas pessoas que contrata para limpar as suas instalações, pelos manuais escolares de História e de Português, pelo Plano Nacional de Leitura e pelo corpo docente e discente. mas a escola não muda sozinha. a escola existe dentro de uma sociedade organizada em torno de relações políticas e económicas. essas relações são relações de poder. a lógica do desenvolvimento e da velha "expansão", a lógica do crescimento, da inovação e da globalização não nasceu do "contato entre povos", como a escola ensina às crianças, nasceu da violência. essa violência existe e está exposta no nosso quotidiano pela visibilidade - quando apanhamos os primeiros comboios da linha de Sintra, direção Lisboa; quando vamos ao WC de um centro comercial; na fila do Centro de Emprego; nas cozinhas dos restaurantes; nas obras no prédio ao lado - mas também pela invisibilidade - nos teatros, nas universidades, na televisão, no nosso grupo de amigxs. lembram-se das telenovelas em que a empregada doméstica era sempre uma mulher negra? a liberdade e a visibilidade branca, em especial a do homem branco europeu cis hetero, é a segregação, a exploração e a invisibilidade de uma mulher negra. o privilégio branco existe. o racismo é uma problemática branca. racismo reverso não existe porque nós, brancxs, continuamos a tirar vantagem do sistema que nos beneficia todos os dias. na escola, no trabalho, no centro das cidades, nos tribunais, nas casas que escolhemos para viver. nós, brancxs, precisamos caminhar no sentido de desmontarmos os nossos próprios racismos. ainda há muito caminho pela frente. todos os dias sou lembrada disso. não poucas vezes, a minha cabeça não pensa para lá do seu privilégio branco. precisamos de abdicar dos nossos privilégios, mudando estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjectivas, vocabulário, como explica Grada Kilomba, aqui:



segunda-feira, 1 de junho de 2020

a respeito da violência

hoje é dia da criança. as crianças querem brinquedos, mas as crianças também querem direitos. assim, nós, as crianças, queremos:

- que todas as crianças possam ir à escola

- que todas as crianças queiram ir à escola

- que a escola seja gratuita para todas as crianças, bem como os manuais escolares e material de apoio

- que a encarregada de educação da criança receba todos os meses o Kindergeld, que é o dinheiro da criança, desde que a criança nasce e até completar a maioridade

- que a escola represente todas as crianças

- que a escola não se iluda com a meritocracia

- que a escola destrua a segregação

- que a escola produza inclusão

- que a escola promova a igualdade

- que a escola fomente o diálogo e o pensamento crítico

- que a escola combata a infoexclusão

- que a escola primeiro compreenda e depois explique o que foi o colonialismo português e que herança deixou

- que a escola descolonize o pensamento

- que a escola incendeie o racismo institucional 

- que a escola proceda à imediata revisão dos seus currículos e manuais escolares de acordo com os pontos anteriores


Orlando e o Tambor Mágico
Orlando e o Rinoceronte
                                 

















                               



livros recomendados pelo PNL para o 1º ciclo do ensino básico. 
nos links podem verificar a disponibilidade dos livros na Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos, na Amadora. 


E NÃO AO TPC!

quinta-feira, 28 de maio de 2020

O SANGUE

quando for grande quero:

- que as ginecologistas, mulheres e homens, não nos receitem a pílula quando lá vamos com 16 anos explicar que há 3 que não menstruamos, quando o problema é claramente outro e tem nome de doença e a pílula não o vai curar, apenas esconder e menosprezar;

- que as meninas não sejam gozadas na escola primária por terem de andar com pensos higiénicos escondidos no bolso com 9 anos de idade;

- que a educação menstrual e sexual comece na escola primária porque há meninas a menstruar com 9 anos de idade;

- que os homens não digam que o sangue menstrual é nojento e também que não achem que, por estarmos menstruadas e querermos ter sexo sem preservativo, somos receptoras de esperma sem consentimento;

- que os pensos higiénicos e os tampões bio sejam distribuídos gratuitamente nos centros de saúde, nas ruas e nas escolas;

- que possamos faltar à escola e ao trabalho por dores excruciantes ou quantidades avassaladoras de sangue, tenhamos as faltas justificadas e recebamos os dias por completo;

- que se veja sangue menstrual na publicidade, nas novelas, nas séries e nos filmes;

- que um dia falar de sangue menstrual não seja mais assunto e que quando explicar como era no antigamente às minhas filhas, elas me digam que já estão fartas de ouvir a mesma conversa e que os tempos mudaram. que me sinta velha por ter vivido algo tão longe do universo delas que elas nem conseguem imaginar! vamos em frente que somos muitas, temos pressa e mais que fazer!

obrigada, Tota!

O Meu Sangue, Tota Alves



dias de paraíso

domingo fomos ao campo. atravessámos a ponte muito cedo para a margem sul. as primas já brincavam na piscina que a tia montou debaixo da oliveira. a tia fazia de tubarão martelo e de thorpedo ao mesmo tempo. a prima pediu à tia para secar o cabelo da barbie primeiro. o dela não que ela não gosta. e de cabelos molhados fomos às laranjas às cavalitas da mãe e enchemos dois sacos para fazer sumo. no caminho comemos as últimas nêsperas e apanhámos folhas de couve para dar aos dois cavalinhos nossos vizinhos, só que eles não quiseram porque estavam a mamar. leite é melhor que couves. as videiras já têm uvas bebés. temos de esperar até setembro para as comermos, mas pusemos umas à boca na mesma e fizemos muitas caretas. vimos os alhos e as cebolas que estão quase boas disse o pai. a água do poço também subiu. regámos as courgettes e os tomates mas eu não gosto de tomate. apanhámos cidreira, lúcia-lima, erva príncipe e hortelã. a cozinha do tio cheira sempre a hortelã. cheira bem, mas sabe mal. o pai diz que os gostos mudam, mas eu nunca vou gostar de tomate! à tarde andámos de bicicleta e tirámos os caracóis da estrada. vimos muitas borboletas! não queria vir-me embora, mas temos de ir. no caminho de volta adormeci a olhar para os riscos brancos no céu que são nuvens que saíram de casa sem tomar o pequeno-almoço. quando acordei, já estava na cama. pai, lê-me uma história. ele leu.



era número 48 a casa amarela 
uma escadinha e uma árvore 
bem pequena na varanda 
que de vez em quando dava jabuticaba 
tão mirrada que nem em faz de conta a gente 
sentia gosto de fruta 
todo dia era dezembro na rua 
miguel pereira mesmo quando chovia mesmo 
naquele dia do tombo 
de patinete o meu grito ecoando 
e o seu espanto até quando a gente 
discordava da cor de certas tardes ou quando 
aprendeu junto a deslizar nas bicicletas 
alguma coisa sempre escurecia 
de noite uma vontade de ficar um pouco mais 
os carros dos pais que chegavam 
como besouros lentos e gordos 
os carros que não deviam 
não podiam

- pai, estás outra vez a ler histórias para ti?

o pai diz que no fim-de-semana vamos outra vez ver as primas porque elas fazem anos e que podemos arrancar as cebolas. perguntou-me se lhes queria dar um livro e mostrou-me muitos no computador. fiquei muito indecisa mas depois vi este e gostei do caracol porque eu e as primas vimos muitos caracóis!


no fim-de-semana já podemos investigar as borboletas e as flores e anotar as nossas descobertas. e depois podemos ilustrar as folhas e agrafá-las e fazer uma capa e dar-lhes um nome! as grandes descobertas cientifico-naturais das primas em Sarilhos Pequenos!

segunda acordei com um grande escaldão. pensava que os escaldões só se apanhavam na praia. afinal não!

terça-feira, 26 de maio de 2020

quadras suburbanas

manjerico da Joana Estrela



perguntei se podia ir à biblioteca contigo mas a tua avó Rita disse que estavas de castigo. não te preocupes que quando for ministra da educação essa brincadeira vai de carrinho de mão. mas agora mesmo queria era ir namorar contigo para trás do pavilhão gimnodesportivo. já fui ao parque central e fiquei a fazer filmes à frente da escola de cinema mas o que eu queria mesmo era ir rebolar contigo para os jardins da Alameda. achas que sou do Restelo porque não sabes que sou da Reboleira e que o seara é um café na Falagueira. sou muito melhor que tu a história e geografia da periferia. por isso ligaste o gps e foste encontrar-me à Brandoa que já nem o autocorretor reconhece. e enquanto os nossos olhos faziam kamehame perguntaste se podias levar-me a jantar ao Vietname.

sábado, 23 de maio de 2020

Janela Indiscreta

ontem a mãe deixou-me ir ver livros. pus a máscara e corri pelas escadas acima mas parei logo no 1.º Direito a olhar para a menina à janela.



antes de voltar ao Godard, pensei trocar-lhe o nome para 3.º Direito, mas depois não consegui. folheei o livro da menina à janela rápido, porque a máscara fazia muita comichão, mas tive uma ideia para a minha composição! este fim-de-semana temos de escrever sobre a casa. eu sou como a Graça, também gosto muito de observar pessoas. há até pessoas que não vejo, mas escuto. por exemplo, hoje acordei com a mãe da Margarida a gritar com ela. gritava muito e depois ainda veio o pai gritar mais. a Margarida começou a chorar e eu já tinha o coração a bater rápido com tantos gritos. depois há a Matilde que mora no prédio em frente. como me mudei há pouco tempo, ainda não a conheço, mas já sei como se chama. Matiiiiiiilde! vai vestir o casaco, Matiiiiiiilde! grita-lhe a mãe e depois vem o pai para o irmão da Matilde ó, filho, então tu não vês a tua irmã? isto aqui é a Venteira e está sempre vento. a mãe e o pai da Matilde têm medo de constipações. no 4º andar do prédio da Matilde, vive um menino mais velho que não nos liga nenhuma. faz festinhas ao cão. o cão passa muito tempo à varanda, mas às vezes também passa tempo lá dentro e dorme sempre lá dentro. também lá vive uma gata que é muito amiga do cão. no 1º andar estão sempre pessoas diferentes e uma senhora sempre a limpar. limpa de máscara e de luvas e deixa sempre os lençóis brancos no estendal. no 2º andar do prédio da Matilde, vivem duas namoradas e dois namorados. 4 pessoas. uma delas faz ginástica todos os dias. têm uma televisão muito grande e vêem a sic.

as casas são todas diferentes e os lugares das casas também são diferentes. por exemplo, há terrenos que são só para casas. aprendi isto no outro dia com a mãe. entre um prédio e outro, havia um terreno com muitas ervas e eu disse
- mãe, olha aqui, um terreno! podemos fazer uma horta! 
- este terreno é para construir um prédio. 
mas por que não pode ser uma horta? 
- porque é muito caro para pôr aí umas couves.

depois comecei a olhar para os prédios e a perceber como o sol se ia embora mais cedo de uns andares que de outros e depois comecei a pensar e a pensar... da sub-cave ao sótão, há rés-do-chão com terraços e há janelas grandes e janelas pequenas. há até janelas que são duas portas que dão para varandas. há estúdios e há águas-furtadas. há casas de tijolo e casas de plástico. chamam-se tendas. há casas de cartão que não sei como se chamam. há casas umas em cima de outras e pessoas umas em cima de outras. há casas com frigorífico e casa de banho e há casas sem água nem luz. há casas de campo e casas de praia e há casas de banco de paragem de autocarro. há casas com cães e casas com gatas e há casas caras e casas com baratas. há casas que já não são casas nem são nada. dizem que vão ser condomínios de luxo. 
- mãe, o que é luxo? 
- luxo é isso que você está vendo.

a Adília Lopes diz que no Céu há muitas moradas. na terra também. isto foi a minha composição sobre a casa. caras casas, quem vê casas, não vê casarões.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Você sabe com quem está falando?

a pergunta surge no livro da Lilia Moritz Schwarcz Sobre o Autoritarismo Brasileiro - uma breve história de cinco séculos, sobre o qual ela falou ao ípsilon há umas semanas.



a frase lembrou-me um episódio passado há uns anos no ginásio clube português, ai não, afinal foi no ginásio de uma muito nobre instituição do nosso querido tugal em que estava eu, outra funcionária e o treinador. nisto desce-me o período e pergunto à colega que ainda não conheço por ser novata se tem um tampão, ao que ela me responde sabe com quem está a falar? nesse dia aprendi que a verticalidade não se perde nem quando estamos agachadas a fazer flexões, desprovidas de indumentárias que nos distingam, e que os anúncios da evax estavam a comunicar tão bem que aquela coisa do sangue azul lhe tinha subido à cabeça. perante tão excelso cartão de visita, só me ocorreu perguntar-lhe não me diga que usa moon cup? hoje desceu-me o período e ao pegar no ípsilon lembrei-me novamente deste episódio tão fairtrade

uns anos mais tarde, vinha a descer a Rua da Politécnica quando senti que me descia o período. entrei na Cister e perguntei se podia ir à casa de banho. depois de confirmar o meu sentimento, encaminhei-me a uma mesa onde várias mulheres conversavam e pedi-lhes um tampão ou um penso e quase todas enfiaram de imediato a mão à mala. saí de lá fina y segura e fui descansada da vida ler o caderno vermelho da rapariga karateka da Ana Pessoa com bonecada do Bernardo P. Carvalho para a Estrela porque às vezes também me dão laivos de realeza. 



a parte do fina y segura é a gozar. fui mas é toda curvada e com uma ganda moínha.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

uma segunda juventude

o meu pai diz que eu devia era ir estudar alemão em vez de estar toda a semana a ler o mesmo jornal. yeah? well, you know, that's just like, your opinion, man. mas se calhar ele tem razão. eu devia era ir estudar alemão, só que não me apetece nada. só me apetece ler o jornal, sublinhar, fazer círculos em nomes, chatear-me quando leio coisas com que não concordo nada, escrever qualquer coisa numa das folhas sobre x que me fez lembrar de y e assim por diante. adoro comparações. se calhar devia era ir estudar literatura comparada em vez de alemão. só que devem ser só livros chatos. ao menos as línguas aprendem-se com livros infantis. no outro dia aprendi imenso com um livro de uma criança de 2 anos. a Lúcia ensinou-me a minha palavra preferida em alemão, Spielplatz! tinha uma boa resposta para o meu pai. era assim: e tu devias era ir estudar latim em vez de estares toda a semana a ler o mesmo livro! já sei como se chama o livro, Alegria Breve. mas ainda bem que não respondi porque ele acabou o livro e ainda foi estudar latim e eu continuei a ler o mesmo jornal. a minha mãe sempre me disse: não respondas!



terça-feira, 19 de maio de 2020

Aqui é um bom lugar

E a ti, o que te faz sentir em casa? 

a pergunta surge na exposição digital O que há neste lugar? do Museu da Paisagem, em diálogo com o livro O que há neste lugar? Guia de exploração da paisagem da Maria Manuel Pedrosa e da Joana Estrela, que eu ainda não li, mas com que vou namorando pela internet. 




durante esta visita guiada, lembrei-me de uma bela paisagem que vi, ainda em Berlim, ia já março a findar. caminhava sem pressa pela rua longa e larga que foi casa de sol e de solitude, ainda a sorrir por causa das macacas desenhadas no chão pelas crianças, uma a giz rosa, pequenininha, outra a giz amarelo, onde o meu pé ocupava exactamente a área de um quadrado, quando reparo numa senhora de risco ao meio e camisa preta a almoçar à janela. o sol do meio-dia ilumina-lhe a testa e o cabelo cinzento muito bem penteado. ela olhará para o prato. nunca olha para mim. nesse dia tive pena de não ter um telemóvel com câmara fotográfica e de não saber desenhar como a Joana Estrela. escrevi no caderno: hoje vi a paisagem mais bonita do mundo e lembrei-me das palavras da Sophia. A beleza não é um luxo para estetas privilegiados, não é um ornamento, a beleza não é para estar nos salões nem nos palácios. A beleza é para estar na rua e na casa de cada um. naquele dia a beleza estava naquele rés-do-chão da Gräfenbachstraße ao meio-dia. 




nesta entrevista, a Sophia diz coisas muito interessantes sobre educação, cultura literária e cultura plástica e livros para crianças, que são livros de que gosto muito. há um, já não para crianças, mas para jovens, escrito pela Ana Pessoa e ilustrado pela Joana Estrela, que se chama Aqui é um bom lugar




dentro do livro, a frase aparece numa página com um desenho que se parece com o Aduela. é bom ver lugares que conhecemos representados em livros. e faz sentido porque a Joana vive no Porto. já a Ana vive em Bruxelas e não sei se foi lá que passou por um café chamado Aqui. talvez o café se chame Ici. hoje sentei-me num banco do Parque Central da Amadora e pensei, aqui é um bom lugar. a Ana dedica o livro aos meus pais, que fazem da vida um bom lugar. há um par de semanas, o Gonçalo M. Tavares escrevia no seu diário, a casa de partida é a casa dos pais. mas por agora, aqui é um bom lugar. no livro, há ainda referência a um livro do Vergílio Ferreira chamado "Até ao fim". o meu pai anda a ler um livro do Vergílio Ferreira, mas não se chama assim. o personagem principal é um professor. o Vergílio também era professor. há uma escola em Carnide que tem o nome dele. uma vez fui lá ler uma composição a propósito de um concurso de escrita. já não sei sobre o que era, mas recordo-me que estava nervosa. não gosto de falar em público. não gosto especialmente de falar, mas gosto muito de escrever. do Vergílio só li aquele que era obrigatório na escola, "aparição". foi o meu preferido de entre aqueles que tínhamos de ler, "Memorial do Convento" e "Os Maias". de qualquer modo, sei como acaba o "Até ao fim". é assim: a vida inteira dentro de mim. dois livros com o mesmo fim!