segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

OS FILMES DO MEU ANO



  1. Another Year, Mike Leigh

  2. Die Fremde, Feo Aladag

  3. Sangue do Meu Sangue, João Canijo

  4. A Separation, Asghar Farhadi

  5. Pina, Wim Wenders

  6. Tuesday, After Christmas, Radu Muntean

  7. Habemus Papam, Nanni Moretti

  8. Oslo, August 31st, Joaquim Trier

  9. Melancholia, Lars von Trier

10. This Is Not a Film, Jafar Panahi

domingo, 18 de dezembro de 2011

MEMÓRIA DE PEIXE E OSSO VAIDOSO



Foi no passado dia 15 que os Memória de Peixe - Miguel Nicolau e Nuno Oliveira - subiram ao palco do Musicbox, para apresentar o seu EP de estreia, a ser lançado lá para meados de Janeiro pela Lovers&Lollypops. Foi maravilhoso ver a transformação das suas músicas em palco, como estes homens-peixe tomaram conta do seu aquário e rapidamente o encheram de ondas, enrolando o público na sua dança. Ouvir os loops de guitarra do Miguel é bonito, mas vê-lo a fazer aquilo é realmente outra batalha naval. E o Nuno dá porrada com fartura na bateria. Da Chick juntou-se a eles no tema Fish&Chick e conquistou a nossa atenção com a sua voz impactante. Aqui fica uma pequena amostra do que foi.




A seguir, Ana Deus e Alexandre Soares (ex-Três Tristes Tigres) subiram ao palco munidos de uma guitarra acústica e outra eléctrica, para apresentarem o álbum Animal, lançado pela Optimus Discos e filho do seu mais recente projecto Osso Vaidoso. A voz da Ana não estava nas suas noites, mas ainda assim era belíssima. Pena o barulho de fundo, do público à conversa. O espaço não os acarinhou, é concerto que pede um lugar mais intimista, rabos sentados no chão, silêncio e branda luz. Para que só atentemos no inigualável soletrar da Ana e nos dedos do Alexandre à guitarra (acústica). As letras da Regina Guimarães, são para ser escutadas com atenção.




Fotos de Graziela Costa

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A SEPARATION, Asghar Farhadi



Quinto filme do realizador iraniano, é o primeiro de sempre a arrecadar três ursos no Festival de Berlim - melhor filme, melhor actor e melhor actriz. A tensão que se sente do princípio ao fim, contém-se a uma explosão. A dor está magistralmente patente na expressão da figura central - a filha do casal - sempre de costas tortas, encolhida sobre si mesma, mas com uma nítida percepção dos acontecimentos, que a fazem perceber como os valores que os seus pais liberais lhe transmitiram não são assim tão lineares. Um conflito entre modernidade e tradição, razão e religião, que se escusa a apresentar culpados ou inocentes. Os personagens tomam decisões e actuam de acordo com os seus princípios. Estreia amanhã. Análise integral aqui.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

VIAGGIO IN ITALIA (1953) Roberto Rossellini

Rossellini era um cineasta intrinsecamente relacionado com o contexto em que a Itália vivia. A impossibilidade de um equilíbrio reflecte o desencantamento da Europa do pós-guerra, e aí a reconstrução económica através do Plano Marshall contribuiu para o declínio da sensação catastrófica no neo-realismo italiano.
Aquando do lançamento de Viaggio in Italia, Rossellini disse que se o neo-realismo é o reflexo da realidade e a realidade mudou, também o estilo deveria mudar.
O crítico francês Alain Bergala afirmou que “la Voyage est le premier filme moderne” – o filme que influenciaria toda a modernidade, especialmente a nouvelle vague francesa.
Rossellini opta por uma história simples, para dar ênfase ao modo de filmar, tendo em conta o local onde a acção se desenvolve. Ingrid Bergman e George Sanders personificam um casal inglês que faz uma pequena viagem por Itália, até Nápoles, de encontro a uma quinta que herdaram e querem vender. A viagem começa por ser prazerosa, mas rapidamente esse sentimento se desfaz para dar lugar à incompreensão entre ambos, resultante da sensação de estranheza, num país com costumes tão diferentes dos seus. Essa sensação é vivida diferentemente por cada um deles, tornando-os em dois estranhos. Ao perceberem que não têm mais nada a dizer um ao outro, cada um segue o seu rumo. A partir daí, Rossellini filma a sua trajectória individual, através da paisagem napolitana, pela qual se dão conta do vazio e fragilidade que sentem.
No final, o casal reconcilia-se. Rossellini acaba por defender os valores do matrimónio e da fé, numa fase de crise com a sua própria mulher Ingrid Bergman.
“Parece-me impossível ver Viagem em Itália sem sentir em cheio a evidência de que este filme abre uma brecha por onde todo o cinema deve passar, sob pena de morte.” (Jacques Rivette, Cahiers du Cinema)
“Filme de confissão e da fé reencontrada, Viagem em Itália é mesmo a obra de um asceta que, na sua encenação recusa a encenação, na sua intérprete e esposa nega a estrela em cada plano.” (Michel Grisola, Ficha Casterman)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

LADRI DI BICICLETTE (1948) Vittorio de Sica


Depois da queda de Mussolini passa-se fome em Itália. Os subúrbios estão cheios de operários sem trabalho, meninos sem escola e mães que percorrem longas distâncias para conseguir água. Antonio Ricci, Maria e Bruno vivem num destes subúrbios de Roma. Antonio consegue trabalho a colar cartazes e Maria vende os últimos lençóis para que o seu marido compre uma bicicleta, indispensável para ocupar o seu posto. No seu primeiro dia de trabalho roubam-lha. Antonio fica desesperado e sabe que tem de encontrá-la se quiser alimentar a sua família. Somos então encaminhados nessa jornada contra o tempo, pelas ruas de uma Roma doente, por onde caminham homens e mulheres gastos pela dor e pelo sacrifício.
Como em tantos outros filmes desta época, os actores não são profissionais. Antonio era, na verdade, um operário que acompanhou o seu filho a uma prova de casting, para o papel de Bruno, e despertou a atenção de De Sica pela autenticidade dos seus gestos. Esta geração de realizadores considerava necessário recrutar actores não profissionais entre os verdadeiros operários, uma vez que se queriam criar personagens que representassem fielmente um grupo social.
Este filme está repleto de detalhes e pequenas situações que comovem o espectador. A imagem de Bruno a limpar a bicicleta do pai é magnífica, sinal de admiração pelo seu herói.
No final, Antonio encontra-se desesperado por não encontrar a sua bicicleta e, ao ver uma fileira delas num parque de estacionamento junto de um estádio de futebol, a tentação apodera-se dele e rouba uma. Alguém se apercebe do sucedido e, num piscar de olhos, a multidão saída do estádio cai em cima dele, humilhando-o. Bruno assiste a tudo e a desilusão marca-lhe os olhos. O pai deixa de ser herói para ser ladrão.
De volta a casa, Antonio não consegue dizer nada ao filho, tal é a vergonha que sente por o ter decepcionado. É então que Bruno pega na mão do pai, compreendendo que mais do que um herói, Antonio é um companheiro que ele quer amar.
De Sica foi também o produtor deste projecto, arriscando o seu próprio dinheiro. A aposta foi ganha, não em Itália, mas nos Estados Unidos, onde obteve o Óscar de melhor filme estrangeiro.
 “A gentileza napolitana de De Sica torna-se, graças ao cinema, a mais vasta mensagem de amor que os nossos tempos tiveram a felicidade de receber depois de Chaplin.” (André Bazin, Qu’est-ce le Cinema?).

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

OSSESSIONE (1943) de Luchino Visconti



Primeiro precursor autorizado do neo-realismo italiano, Ossessione foi adaptado da novela de James M. Cain, The Postman Always Rings Twice.
Com trinta anos, Visconti mudou-se para Paris e foi ajudante de realização de Jean Renoir, em Une partie de campagne. Passados seis anos, decepcionado com Hollywood, realizou este filme.
“Dos filmes ganhei, sobretudo, o compromisso de contar histórias de vida de pessoas: homens que vivem nas coisas, não a coisa mesma. O cinema que me interessa é um cinema antropomórfico”. Publicado em Setembro de 1943 na revista Cinema, da qual foi editor, Visconti manifesta-se quanto à sua ideia de neo-realismo. A visão da realidade é intrínseca à sensibilidade artística do seu autor. Em Ossessione, a vida aventureira opõe-se à estabilidade burguesa. O amor e a violência instintiva fazem parte da sedução e do adultério, reforçando uma visão “aristocrática de esquerda” por parte do realizador.
Foi largamente discutido pela imagem que dava de Itália, ainda em domínio fascista. Até aqui, o cinema italiano representava-se em comédias ligeiras de ideologia pequeno-burguesa, ou em filmes de propaganda de uma Itália “heróica e sã”.
Ossessione veio romper com esse mundo, ao escolher a cidade de Ferrara, com gente e espaços reais. Pela primeira vez, representa-se com um realismo quase documental a cidade e os seus arredores, mostrando a vida quotidiana tal como ela é. Tratam-se problemas psicológicos que importam às classes populares, tendo por trás a história de um casal de amantes malfadado.
Visconti situa as suas personagens numa Itália rural miserável. Os personagens movem-se no seu meio, e nesse sentido utiliza a profundidade de campo para mostrar todas as acções que ocorrem naquele espaço.
As interpretações de Clara Calamai e Massimo Girotti são impressionantes, numa história sensual onde os personagens são tudo menos glamorosos. Os amantes Gino e Giovanna reúnem-se na cozinha da pousada que esta dirige com o marido. Gino pede a Giovanna que fuja com ele, mas ela conhece o seu carácter aventureiro e nega-se a fugir, preferindo a estabilidade que Bragana tem para lhe oferecer. Tempos mais tarde encontram-se na cidade. Bragana está bêbado e participa num concurso de canto. Os amantes levam a cabo o plano de o matar através de um acidente de automóvel, escolha que só serviu para acentuar o sentimento de culpa. A relação desmorona-se e acabam por ficar sozinhos.
Giovanna e Gino são personagens trágicos, incapazes de encontrar um espaço onde ambos se possam situar. Ela é impelida a saltar da segurança do seu casamento por força de um desejo de paixão. Por querer agarrar-se à riqueza que o casamento lhe trouxe, acaba por destruir a sua relação, lidando com a dualidade riqueza e amor. Ele tem sempre uma força presente que “lhe sugere” que não fique com Giovanna, tal é o medo que tem de se entregar a um compromisso tradicional com cujas as leis não compartilha. A estrada é a única solução como fuga à sociedade. Preso por desejar duas coisas antagónicas, Gino acaba por se destruir a si e aos outros.
“Visconti deu (com este filme) o tiro de partida para o neo-realismo sem nunca ter aderido a ele (...). É um melodrama negro, sem porta aberta para um mundo melhor. O trato da História não dá inclinação particular para o optimismo (...). Esta transposição do romance de James Cain tem mais força do que o romantismo e o trágico resulta não do “realismo” mas sim da estilização de uma certa realidade” (Claude Michel Cluny, Ficha Casterman).

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

MELANCHOLIA


Na semana passada vi o novo filme de Lars Von Trier. Saí a flutuar da sala de cinema e demorei vários dias a processar a experiência. Fiquei confusa. Estará Trier, literalmente, a gozar connosco, ou será antes um objecto de profunda reflexão? Depois li e vi muitas entrevistas dadas pelo realizador e pelas actrizes e comecei a inclinar-me para a segunda hipótese.
A sinceridade de Trier é uma coisa rara. A sua inteligência sarcástica aliada à sua timidez nervosa chega a comover-me. É um prazer ouvi-lo, bem como a Charlotte Gainsbourg, a menina-mulher por quem me apaixonei em The Science of Sleep, e que agora está tão crescida, que às vezes me pergunto o que terá ainda guardado para nos dar. Charlotte é apaixonante, desde logo pela doçura lânguida da sua voz. Era capaz de ficar a ouvi-la uma vida inteira.
Mas não me alongo mais, porque senão não me calo. Sobre o filme podem ler aqui ou ver a reportagem no Canal 180 - que escrevi com o João Martinho - com Trier, Charlotte e Kirsten, em pessoa.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O NEO-REALISMO E A CIDADE


Este post vem atrasado. Já aqui falei de vários filmes desta época, sem ainda ter dedicado especial atenção ao movimento em si. Mas mais vale tarde que nunca, por isso aqui fica o apontamento a uma das épocas áureas do cinema.

Ainda as consciências do Mundo não tinham recuperado do choque da bomba atómica, já o cinema começava a sua fuga, na tentativa de trilhar um futuro melhor.
O cinema embrenhou-se na realidade, depois da época triunfal dos estúdios americanos. Um “cinema do encontro” (Cesare Zavattini), da “revelação” e de combate, que privilegiou a representação, e ao qual a modernidade vai buscar influências. Todas as Novas Vagas que surgiram no início da década de 60 derivam desta proposta italiana que deu asas à arte de fazer cinema, depois da barbárie da Segunda Guerra Mundial.
Os efeitos traumáticos da Guerra (os totalitarismos, os campos de concentração e a bomba atómica) deram à 7ª arte uma consciência documental e social, que mostrou um mundo incompreensível. Garantida a linguagem narrativa, a cinematografia parte para outras estéticas e funções.
Foi primeiro em Itália que um grupo de realizadores se destacou, pondo em causa uma estética nacionalista e conformista saída dos melhores dos mundos, onde todas as personagens vivem bem e sem problemas.
O neo-realismo italiano surge na primeira metade dos anos 40, opondo-se à estética dos “telefones brancos”, nome que apelidava os melodramas sobre a classe média que promoviam uma boa imagem de Itália, controlada por Mussollini, e onde existiam sempre telefones brancos dentro das casas.

Em 1943 os telefones desaparecem e Luchino Visconti vem destruir a harmonia desse mundo artificial, veiculado pelo cinema do regime, com a sua obra Ossessione. Conta a história de um operário que se apaixona por uma mulher casada e que concorda com o seu plano de matar o marido. A sua exibição foi proibida por violar princípios que o regime tinha abolido - a representação do crime e da imoralidade –, facto que lançou as sementes para a construção de algo novo, que viria a materializar-se em 1945, com a chegada das tropas aliadas e a queda do fascismo. A partir daí o cinema podia contar a verdade sobre as condições de vida do povo e os efeitos da guerra.
O neo-realismo privilegiou temas da realidade social da época, como a pobreza e o desemprego no pós-guerra, em detrimento das adaptações literárias. Usou uma linguagem natural que garantisse um maior realismo e aproximou-se da estética documental através da luz natural e da câmara à mão. A ficção ficou reduzida ao mínimo graças à fidelidade à natureza: tudo tinha de ser o mais natural possível, a representação, os cenários e os acontecimentos.
Rossellini destacou-se no neo-realismo por possuir uma concepção da realidade inspirada na improvisação, na recusa do argumento detalhado com indicação de diálogos e cenários, na estrutura narrativa elíptica, na imprevisível motivação das personagens, e no uso de planos gerais e de conjunto em detrimento de grandes planos. É o espectador quem vê, através da realidade contínua no ecrã, o drama da cena.
O neo-realismo é a negação da vedeta. Utiliza indiferentemente actores profissionais e ocasionais. Ingrid Bergman contracenava com actores ocasionais, recrutados nos próprios lugares da acção, nos filmes de Rossellini. O que importa é não pôr o profissional no lugar habitual, pois a relação que estabelece com o seu personagem não deve incutir no público uma ideia a priori, o que o deixava confuso, uma vez habituado a vê-lo no papel de vedeta de Hollywood.
O grande feito do neo-realismo foi levar a vida da gente vulgar para o ecrã, mostrando o seu dia-a-dia sem dramatismo.

A CIDADE
O neo-realismo tem um forte cariz político e social vinculado na cidade, centro gravitacional de uma Itália perdida que deseja reencontrar a sua essência. É esta Itália devastada pela guerra que aqui encontramos, cujas cidades em ruínas são o melhor retrato. Uma geração de realizadores sem meios financeiros monta estúdio nas ruas, motivada por uma necessidade de denúncia, conciliação e procura de um humanismo perdido.
O neo-realismo vive na cidade. André Bazin e Siegfried Kracauer, dois dos mais importantes críticos do movimento, interessaram-se por essa componente cinemática da cidade. Bazin descreve a cidade italiana como “prodigiosamente fotogénica”: “Desde a sua antiguidade, o planeamento das cidades italianas permaneceu teatral e decorativo (...) A isto se acrescenta a luz do sol e a ausência de nuvens (inimigo principal das filmagens em exteriores) e assim se explica o porquê da superioridade dos exteriores urbanos dos filmes italianos.”
Kracauer considera que os “filmes cinemáticos” são abençoados por um conjunto insubstituível de qualidades técnicas e formais da sétima arte que potenciam uma análise articulada do “fluir” da vida, mais notório nas ruas onde os espaços materiais se conjugam com as interacções sociais. É nas ruas que o cinema vai aprender a relacionar-se com o humano, nos seus ambientes físicos e sociais, de uma forma mais intensa, devido ao momento histórico de crise. Segundo o autor: “Quando a história é feita nas ruas, estas tendem a saltar para dentro do ecrã.”
Ao nível do movimento cinematográfico existiram duas fases distintas no neo-realismo. A primeira, de 1943 a 1950, fez dos desafios dos protagonistas os desafios reais de uma sociedade. Roma, Cittá Aperta invoca a solidariedade do povo italiano na resistência à ocupação alemã. Em Ladri Di Biciclette, Antonio é um desempregado entre tantos outros. Os protagonistas destes filmes partilham as experiências diárias de um povo destruído pela guerra. A partir de 1950 o protagonista alheia-se do mundo urbano. Em I Vitelloni, a vida citadina italiana regressa à rotina e aos tempos de paz e os protagonistas, fazendo parte de uma sociedade, já não têm uma experiência tão colectiva. Passam antes por crises existenciais que respeitam a cada um, numa representação mais reflexiva. Nesta fase, a luta com o cinema mais comercial intensifica-se.
Percebe-se deste modo que o neo-realismo tem uma profunda relação com a cidade, moldando-se por ela e acompanhando o seu desenvolvimento. Ela é o espaço para a união dos personagens perdidos do pós-guerra.
Nos grandes meios urbanos existia uma multidão anónima que vagueava pelas ruas, alheia aos problemas dos outros. Apesar de todas as pessoas estarem afectadas, apenas se preocupavam consigo e com os seus. No neo-realismo, a solidão construía-se na imensidão, e é esta uma das suas características mais importantes. É imposto o individualismo a cada um, num momento em que os homens nunca tinham estado tão próximos uns dos outros. As pessoas caminham sem olhar para o lado, sem se distraírem com o sofrimento alheio.
No cinema neo-realista não se constrói, observa-se, e é aí que reside a sua essência.

sábado, 26 de novembro de 2011

A TRILOGIA NEO-REALISTA DE ROSSELLINI


Apesar da crise que o cinema italiano atravessou, Rossellini realizou doze filmes num período de dez anos e é inevitável atribuir-lhe o título de pai do neo-realismo. Quando iniciou  aquela que ficou conhecida como a “trilogia neo-realista”, sabia não poder contar com estúdios ou cenários. Os recursos eram mínimos, mas a partir deles confrontou o cinema e o mundo com a realidade de ruínas, caos e decadência. Os três filmes são Roma, Città Aperta, Paisà e Germania Anno Zero. A análise dos mesmos tem como ponto de partida as três figuras representadas no argumento de Rossellini – a confissão, o escândalo e o milagre – e o modo como a verdade poderia saltar delas. 


ROMA, CITTÀ APERTA (1945)

O primeiro filme demonstra algumas novidades estilísticas e desenvolve a procura de liberdade, conseguida com a vitória sobre a ignorância, as paixões, a dor e a morte. Exemplo disso é a cena final, quando as crianças que preenchem quase todo o filme caminham sobre a vista da abóbada de S. Pedro, apontando a liberdade sobre a via “católica”, como que uma via de fraternidade universal.


Rossellini perguntou: “se as coisas estão lá, para quê manipulá-las?”. Respondeu com um filme comunitário, dirigido ao coração, onde sobressai o autêntico. Roma é cidade real em toda a sua sujidade e tinha sido libertada apenas há dois meses quando o realizador começa a filmar a sua Cidade Aberta. É um filme importante porque faz da libertação italiana o ponto de partida de uma verdadeira reviravolta social, económica e política.
A história decorre  durante os últimos dias da ocupação nazi. O argumento foi quase literalmente ditado a Rossellini e Sergio Amidei (argumentista deste filme ao lado de Fellini) por um chefe da Resistência que lhes narrou o quotidiano dos combates secretos que cozinharam a Libertação. A Resistência é o grande tema deste filme e Pina e Don Pietro são os seus heróis, sacrificando a sua vida pelos ideias em que acreditam. Além da base real que integra, Rossellini utilizou também imagens da época, o que aproximou a película do género documental.
Pina (Anna Magnani) é viúva e tem um filho pequeno e outro na barriga, resultado da relação com Francesco, membro da Resistência Italiana. A sua atitude perante a vida confere-lhe uma superioridade moral que faz dela o espírito ideal da mulher italiana, dotado de força, sinceridade e compromisso. É ela a grande heroína desta história. Luta sem desistir e toma conta da família sem adoptar a postura de mãe mártir. É ela quem assalta a padaria e é ela quem morre, grávida e cheia de vida, ao perseguir o carro nazi que leva Francesco. A mulher não faz a guerra, mas sofre mais do que os homens, e a luta que vemos no ecrã não é a das trincheiras, mas a das pessoas que combatem por uma existência mais digna. A morte da mulher do povo, do resistente comunista  e do padre podem encarar-se como uma espécie de união humana onde acontecimentos como estes são precisos para alcançar a liberdade final. Os soldados que matam Pina são interpretados por soldados alemães presos depois da guerra. Este é um excelente exemplo do que o cinema neo-realista tem para nos oferecer em relação ao não-actor. O papel destes soldados é de extrema importância se pensarmos que nada poderia ser mais real do que alguém que não está a representar, mas sim a cumprir ordens. “Para criar o personagem que alguém tem em mente, é necessário que o realizador entre numa batalha com o seu actor que normalmente acaba com a submissão ao desejo deste. Visto que eu não tenho o desejo de gastar a minha energia numa batalha como esta, apenas uso actores profissionais ocasionalmente.” (Rossellini)
O neo-realismo de Rossellini “resume-se em três palavras: amor ao próximo”. Interessa-lhe dizer a verdade sobre a Itália do pós-guerra: o desemprego, a dureza da vida nos campos, a delinquência, a condição feminina, etc.
“A força deste filme consiste em fazer sair os heróis não de hipotéticos desenvolvimentos metafísicos mas sim de uma dolorosa e visível conquista da dignidade. O carácter quase simbólico das personagens não foge nunca ao realismo da autenticidade; pelo contrário, ilumina do interior uma situação extrema que, ao reunir factos precisos e datados, consegue alcançar a violenta transparência da grandeza trágica” (Freddy Buache, Le Cinema Italien)





PAISÀ (1946)

Rossellini filma pessoas, não pensamentos, o que dificulta a visão dos filmes por aqueles que querem pensar mais as imagens do que propriamente vê-las. É aqui que surge Paisà, filme de guerra por excelência e da “libertação” (embora o caminho até ela se mantenha manchado de morte e traição), onde encontramos não só a tentativa de a obter por parte dos italianos, como pelos americanos, tentando compreender alguma coisa que permita ultrapassar diferenças culturais e étnicas. No final do filme o cerco fecha-se em volta dos resistentes e termina com uma fileira de corpos amarrados e atirados à água pelos soldados nazis, enquanto uma voz nos diz “quatro meses mais tarde a guerra tinha acabado” - a morte como sacrifício necessário para alcançar a liberdade.







GERMANIA ANNO ZERO (1948)

Para encerrar este capítulo, Rossellini produz e realiza em alemão Deutschland in Jahre Null. Dedicado à memória do seu filho , tem como protagonista o jovem Edmund e realça novamente o reflexo da morte que culmina no seu suicídio, resultado do desespero associado aos restos do regime nazi – o fim da esperança na liberdade.
Observamos uma cidade material e moralmente destruída através dos olhos de uma criança que nos grita o seu sofrimento vindo de pecados de outra gente. Alemanha Ano Zero tenta reproduzir o “Inferno”, arriscando dizer que para alcançar o “Paraíso” seria necessário atravessar todo este caos e conhecer verdadeiramente a experiência real até chegar ao sonho.



A trilogia de Rossellini sobre a Segunda Guerra Mundial é dotada de uma aura de “sacrifício heróico” de pobres inocentes que são devorados pelo sistema. Todos os episódios de Paisà terminam tragicamente: os americanos tentam ajudar os italianos, mas a diferença de perspectivas faz com que não consigam comunicar. Em Germania ambas as gerações (a antiga e a nova – o avô e o neto) estão condenadas à destruição. A desagregação da família retrata a perda de ideais. Em Roma, Città Aperta, a inocência de Pina levou-a à morte, o padre que luta pela justiça adoptando os ideias comunistas acaba por ser fuzilado, e Marina vende a sua moralidade para obter conforto e para se afogar na loucura, por ter denunciado o seu amante. Estes sacrifícios cultivam as sementes de um regime mais digno.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

HABEMUS PAPAM


O novo filme de Nanni Moretti chega às nossas salas esta Quinta-feira, dia 24. Muitas críticas negativas ao mesmo já me passaram pelos olhos. Parece que estavam todos à espera de uma crítica mordaz à Igreja Católica, quando o que ele queria era falar de pessoas e do terror da responsabilidade.  
E que crítica maior que a de sugerir que a Igreja precisa de alguém com ideias novas e de um Papa que recusa a vontade de Deus?  
A Igreja é fechada, inquisidora e repressiva, e o realizador expõe os seus representantes como humanos, que mais que líderes espirituais, são pessoas, com medos e angústias.  
De portas abertas a lugares que nos estão vedados, porque divinos, Moretti invade-os com passe de acesso livre aos recantos mais sagrados da Terra.  
É a liberdade total de um criador cada vez maior e que merece todo o meu respeito e admiração.
Em baixo, o texto que escrevi para a C7NEMA.

A Razão Humana

“Habemus Papam” abre com imagens reais do enterro de João Paulo II. Logo a seguir, os cardeais deslocam-se, em fila, para o conclave onde se procederá à eleição do novo Sumo Pontífice. Cá fora, jornalistas de todo o mundo relatam os acontecimentos como se de um campeonato de futebol se tratasse. Cada um torce pelo representante do seu país.
Durante a votação, os cardeais esticam a cabeça para ver quem o colega do lado elegeu, escrevem, riscam e reescrevem o nome do seu candidato. Estamos perante uma centena de cardeais que se comportam como autênticas crianças. É uma cena com bastante humor e ao mesmo tempo um pouco trágica, uma vez que nenhum deseja assumir a enorme responsabilidade que o novo cargo acarreta, e todos rezam a Deus para que não os escolha. Colocam-se em crise os símbolos da Igreja a favor das atitudes humanas.
Nanni Moretti entra no conclave porque o cinema é invasivo e permite-se tocar o divino, o invisível e impalpável. O humor resulta da inserção de elementos incompatíveis e improváveis no mesmo espaço, conseguindo ridicularizar os valores que representam. Transporta-se o profano para o sagrado: um papa que faz psicanálise ou um campeonato de voleibol disputado pelos cardeais. Ciência vs. religião, divino vs. humano. Freud, Deus, Darwin, Chekhov e voleibol numa mesma equação.
Estabelece-se um jogo permanente com o acto de representar, uma vez que o sonho do novo Papa era ser actor. A narrativa debate-se com a dificuldade em assumir um papel, com o Homem dentro do Papa que vai à procura da sua Revelação, porque a que Deus lhe deu não lhe chega. Passa a ideia de que não existe uma sabedoria superior e todos temos de escavar no processo de auto-conhecimento. De fora, a fé dos milhares de seguidores que esperam na Praça de São Pedro. De dentro, a mente confusa de um simples homem.
Moretti e Piccoli cruzam-se apenas uma vez, para uma consulta rápida entre um público composto por cardeais sedentos por informações escabrosas. Mas o psicanalista está proibido de tocar assuntos como traumas, sonhos, desejos, sexo ou família. Não sendo religioso, o Dr. Brezzi diz a Melville que a alma e o inconsciente não podem coexistir. O sarcasmo parece estar a começar, mas não se estende por aí além. O filme não expõe uma crítica aberta ao catolicismo, mas sugere que a Igreja necessita de um líder que traga uma grande mudança. E é sobre mudanças que se medita, sobre a capacidade de escolher, sobre a razão de cada um.
“Habemus Papam” é também sobre o destino. O destino de um homem que perdeu a confiança e a esperança no seu Deus. Que tem dúvidas quanto à sua capacidade de atingir os objectivos que Este lhe pôs nas mãos. Um seguidor a quem o papel de líder espiritual de um bilião de católicos o assusta e paralisa. Quem, em plena consciência, aceitaria de imediato tal papel, a menos que acreditasse ser a vontade de Deus, que o guiaria no desempenho desse ofício? Tal como Brezzi lhe diz, essa não foi a vontade de Deus, mas a dos cardeais. Só que estes não o escolheram por o considerarem um líder extraordinário - pois percebemos que ninguém estava à espera de tal resultado - mas porque todos terão pensado que mais ninguém votaria nele. E essa desresponsabilização irá manchar a Igreja de vergonha.
Toda a acção é agridoce. Por um lado, os cardeais parecem estar a festejar o facto de não terem sido ‘o escolhido’. Tomam cappuccinos, jogam partidas de cartas e entregam-se entusiasticamente a um torneio de voleibol. Por outro, é preciso perceber que estão a viver na ilusão e não têm conhecimento da verdadeira dimensão do problema. E à noite, sozinhos nos seus quartos, que o medo é exposto através de cigarros, comprimidos e pesadelos.
Há um plano extraordinário que se repete ao longo do filme: o das cortinas vermelhas a esvoaçar no vazio. Cria-se um jogo quase melancólico de luz e sombra, do visível e do desconhecido que exemplifica magistralmente o que Moretti quis mostrar neste filme. Pisamos o terreno da desconstrução dos hábitos da fé cristã, onde o Papa tem o direito de renunciar ao cargo, por livre e espontânea vontade. Uma bênção à liberdade de expressão.
Michel Piccoli tem uma performance notável, transmitindo humildade, inteligência, medo ou puro prazer unicamente através da sua expressão e do movimento dos olhos.
O filme contou com um orçamento de 8 milhões de euros, a produção mais cara do realizador até à data, em parte devido à rigorosa recriação da Capela Sistina na Cinecittà.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

MEMÓRIA DE PEIXE


Ontem foi lançado o primeiro single de um projecto que me despertou a curiosidade num concerto no Musicbox, há uns meses largos. Foram tocadas apenas quatro músicas, pelo Miguel Nicolau. Loops de guitarra que florescem, se entranham nas vísceras e nos transportam ao patamar etéreo. É fresco, harmonioso, simples e bonito.
Entretanto o projecto cresceu e trouxe o Nuno Oliveira à bateria, adicionando balanço aos nossos pés descontrolados e fazendo-nos abanar o capacete com um entusiasmo vibrante. E porque faltava um elemento feminino, veio ainda Da Chick juntar-se aos dois mosqueteiros, com a sua voz electrizante, um misto de menina e mulher.
Foram dados concertos por esse país fora. Estiveram no Mercado do Quebra Costas, em Coimbra, no Taina Fest, no Porto, no Santiago Alquimista, em Lisboa. Tocaram para A Música Portuguesa a Gostar dela Própria e expandiram-se em vídeos maravilhosos e doces, como Fontana Park e Day Job.
O vídeo da Fish&Chick foi realizado pelo Miguel e está uma coisa realmente bonita de se ver.

Dia 15 de Dezembro, esta MEMÓRIA DE PEIXE vai apresentar o seu primeiro EP no Musicbox. Talvez o peixinho também lá esteja. Levem-lhe comida como forma de agradecimento e esvaziem-se de tudo, para que a vossa memória se possa encher de canções solares.

Para os mais curiosos, deixo também a entrevista que tive o prazer de fazer ao Miguel.

I VITELLONI (1953) Federico Fellini


Depois de aqui ter escrito sobre La Strada, I Vitelloni ficou a remexer-se-me nas entranhas. É o terceiro filme de Fellini e pertence à segunda fase neo-realista. O realizador acolhe esta estética, mas enriquece-a de novos sentidos, a par dos seus colegas de geração Antonioni e Pasolini. “Abrem-se a novas problemáticas e a novas perspectivas estilísticas, sem todavia esquecer-se das experiências iniciais no âmbito neo-realista.” (Deleuze). I Vitelloni contém já sinais do grotesco que vem a explodir nos seus filmes posteriores.
Somos desde logo apresentados a Moraldo, Riccardo, Leopoldo, Fausto e Alberto, cinco homens avançados na casa dos 30, com atitudes que lembram o universo inconstante da adolescência, enquanto transição da infância para a idade adulta. Na primeira cena, vemo-los numa marcha que tem ainda todo o peso fascista italiano, numa pequena cidade que, mal acabou de acordar, teve de se confrontar com os destroços da derrota que desenhou a sua passividade. Passividade entranhada sobre estes rapazes grandes, à procura de passar o tempo, evitando encontrar as respostas que os levarão à idade adulta, arquétipos do provincianismo onde estão inseridos.
Vislumbramos os traços de uma sociedade em transição, patenteada no uso da expressão “ok” ou nos anúncios que antevêem a chegada do consumismo e servem de pano de fundo às discussões entre Fausto e Sandra. 
Em contraste directo com estas atitudes está a família de cada um destes personagens, símbolo da tradição, da responsabilidade e do trabalho, e da qual ainda nenhum se tornou independente. A família quer que os seus herdeiros sigam os seus paços, mas estes estão interessados noutro caminho, e entre estes dois mundos não conseguem seguir nenhuma direcção, presos no marasmo.
Estes Inúteis vivem para os pequenos prazeres do dia-a-dia, sem grandes compromissos. Fausto engravida a irmã de Moraldo e é obrigado a casar com ela e a arranjar trabalho. O seu fascínio pelo sexo oposto não o deixa ser um bom marido e quase acaba por destruir a sua recente família. Querendo reconquistar a mulher, promete-lhe não repetir a traição e fica ao critério do espectador se irá ou não cumprir a promessa.
Alberto vive com a mãe e a irmã e depende do rendimento da segunda, criticando-a, no entanto, pela falta de vergonha por ‘andar metida’ com um homem casado. Mas é a sua irmã a única personagem que escapa àquela vida e parte, deixando-os a todos transtornados, por quererem ter a sua força.
Leopoldo é um projecto de dramaturgo à procura da perfeição inconcebível, e Ricardo é o condutor do carro em que vagueiam pelas ruas, numa fuga ao mundo real e do trabalho, do qual gracejam constantemente. A situação complica-se quando o carro avaria e a realidade ameaça apanhá-los, por mais veloz que seja a corrida.
Moraldo, personagem central, destaca-se dos outros ao ver o mundo com mais clareza. É o mais calmo do grupo e o mais próximo do mundo familiar, mas não deixa de pensar nessa fuga que o levaria a outros mares, e que acaba por tomar no final do filme, sem no entanto sabermos se vai florescer ou falhar. A forma como encara as atitudes de Fausto para com as mulheres, como conduz Alberto a casa num gesto quase paternal, ou o seu perfil de observador distante e pensativo, anunciam a sua partida para a idade adulta.
Como em muitos outros filmes, Fellini dotou-o de marcas autobiográficas e por vezes parece que entramos num sonho do seu passado longínquo, pintado de lembranças e evocações a pequenos acontecimentos. Ganhou com I Vitelloni o seu primeiro prémio, o Leão de Ouro em Veneza.
“Para mim, o neo-realismo é uma maneira de ver a realidade sem ideias pré-concebidas, sem convenções entre ela e eu – encarando-a sem preconceitos, olhando para ela honestamente – o que quer que seja a realidade, não só a realidade social, mas a realidade espiritual, metafísica, tudo que há num homem.” (Fellini)

sábado, 19 de novembro de 2011

SPLENDOR IN THE GRASS (1961) Elia Kazan


Ao escrever um artigo sobre Almodóvar (que pode ler-se aqui), veio-me imediatamente à lembrança este filme, melodrama dos melodramas.
Quinta longa de Kazan, Splendor é dramático, exacerbado e controverso, visto dentro do seu tempo. A acção decorre entre o fim dos anos 20/inícios dos anos 30, no começo da depressão, em Kansas. Encara o primeiro amor e as consequências desastrosas da repressão sexual num par de adolescentes apaixonados, quando novos sentimentos aparecem e são contrariados devido aos valores morais e éticos que a sociedade prega.
Existe aqui esse modo romântico de olhar o amor, de o divinizar, elevando a sua não concretização ao patamar da maior dor, uma dor consentida e quase fonte de prazer – aquele prazer que é o do sofrimento. O colapso do romance coincide com o crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929.
Apesar de ser já um filme de 60, veio no seguimento dos filmes dos anos 50 que retratam os problemas e a exploração da juventude, como Picnic (1955), Rebel Without a Cause (1955), East of Eden (1955), Peyton Place (1957), A Summer Place (1959) e o musical do mesmo ano West Side Story (1961).
A decoração do quarto de Deanie é símbolo da sua inocência, com tons rosa, fotografias de Bud e um ursinho castanho.
Bud quer fugir de um troféu que não conquistou, herdou – a torre de petróleo. Depois da irmã ter fracassado, tem se suportar sozinho as esperanças do pai.
Ginny lembra a Marylee (Dorothy Malone) de Written on the Wind (Douglas Sirk, 1956).
Mrs. Stamper é uma personagem sem carácter ou opiniões, que vive à sombra do marido. Ace domina-a, a ela e ao filho, que por seu turno saiu apagado como a mãe, sem grandes talentos ou vontade de marcar a diferença. É interessante ver que é Ginny a mais parecida com o pai, determinada e desobediente, é dona do seu nariz.
Na cena em que Bud vê Ginny num carro com um homem qualquer, entra numa luta, mas não é só pela irmã que luta. Também ele se sente a cair e então começa ao murro a todos os homens que lá estão, libertando a sua fúria e a sua frustração. A adolescência devia ser um período de experiência e descoberta, um mundo que Ginny já esgotou e onde Bud ainda nem entrou, completamente castrado por Deanie, pelo pai e pela sociedade. Enquanto luta com os homens que abusam da sua irmã, ela observa a cena a chorar, vendo a sua degradação e aquela em que colocou o irmão – é por Ginny ter arrasado com tudo o que o pais lhe proporcionaram, que Bud é tão pressionado -  e ela está sinceramente triste nesta cena, a última em que a vemos. Para ela não há salvação, Ginny vai ter de morrer, pois apenas os bem comportados merecem o perdão.
Os Stamper acabam por se extinguir naquela cidade e a sua casa tornou-se numa funerária, simbolizando a morte do pai, da filha e da sua fortuna.
A felicidade que Deanie queria está representada na família que Bud construiu. Agora já nem é uma questão de diferença de classes, porque Bud é muito mais pobre que ela e Angelina muito mais campónia. É uma questão de tempo. Bud nada fará para recuperar o tempo que o afastou de Deanie. Ele é o conformista desta história, e ela a vencida. Foi o desejo que a levou à loucura. O desejo que estava fora do quadro de uma sociedade puritana e rígida. O seu pecado começou dentro da sua própria cabeça, não precisou sequer de uma concretização.
O filme atravessa a crise económica, a crise moral e de costumes. É nostálgico, dorido e apela aos sentimentos e às relações afectivas. As personagens são estereotipadas. Temos a família pobre e a família rica, uma rapariga inocente e virginal (Deanie) e a sua antítese (Ginny), e um amor não consumado.
Bud acabou por não corresponder a nenhum dos sonhos que o pai tinha para ele e ficou com uma rapariga ainda mais pobre que Deanie, que por seu turno percebe que o seu herói dos tempos do Liceu, não passa agora de um homem que ganha o suficiente para dar de comer à mulher e aos filhos. Deanie está agora muito mais madura que ele. Ambos tiveram de aceitar compromissos nas suas vidas e ela compreende que a paixão que um dia partilharam nunca mais será recuperada, pois muita coisa já se passou desde que eram dois miúdos. Despedem-se, sabendo que o seu capítulo conjunto está encerrado, que não vão ter vidas entusiastas, mas que vão seguir em frente, ainda que resignados ao contexto.
Quando Hazel pergunta: “Deanie, honey, do you think you still love him?”, ela olha para o seu futuro, aceitando-o. Resolvidos os seus conflitos interiores, os seus anseios e desilusões, põe de lado a exuberância da juventude e ganha força a partir do que resta – as suas memórias:
“Though nothing can bring back the hour
Of splendor in the grass, of glory in the flower
We will grieve not, but rather find
Strength in what remains behind.”

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Atlas Sound - Parallax



Faltavam umas batidas por estas bandas.


Is your love worth the nausea it could bring?
Is your love worth those you left hurting?
Is your love like a thousand bells ringing?
Is your love bright like a shining golden ring?
Run to the one that holds you down
And feel your feet on the ground
And hope the ground opens up
And swallows you and your love
To the ground you will seek
Only love, only peace
Will it find you today?
Will it find a way?

Is your love like a sunset chandelier?
Is your love like a song only you hear?
Is your love tight -- that old familiar fear
That you love might one day disappear.


Saiu no passado dia 8 o melhor álbum de Atlas Sound. Algumas palavras sobre ele podem ser lidas aqui.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A Fronteira do Amanhecer (2008) de Philippe Garrel



Depois de ver Un été brûlant, recordei-me deste, que ao pé do primeiro se torna melhor do que realmente é. Daquele já falei mal o suficiente aqui. Por isso vou falar do outro, para que algo de bom reste.
É um filme sobre a força e a fraqueza do amor, naquele lusco-fusco em que não há luz nem escuridão, em que não há nada. Feito de ambiguidades, correspondências, partidas e quebras, passado em interiores - uma casa, um quarto de hotel, um hospital - onde se tomam decisões, onde os personagens vivem angustiados na sua solidão. Apesar de se encontrarem, todos estão sós, abandonados àquelas paredes brancas, entregues a si mesmos.
François e Ève estão condenados ao fracasso antes mesmo de se conhecerem. Ela é frágil (terá tentado suicidar-se no passado) e apoia-se nele, que nada pode fazer por ela, preso ao fantasma de uma mulher que lhe dedicou um amor louco e que o levou até ao seu túmulo, como que uma premonição de morte. Não é, pois, só Carole que enlouquece. A lucidez de François vai-se perdendo com as suas aparições e com o sentimento de auto-culpabilização. Ève é, no meio disto tudo, a vítima do amor doentio de François e Carole, e o filho que carrega no ventre representa a sagração da fraqueza e do medo dela e François, que para ali canalizaram a esperança de um amanhecer que tarda em aparecer.
A câmara é gentil com os personagens, mostrando sempre a sua beleza, mesmo aquando da autodestruição de Carole. Vemos como estão presos na sua pele e às paredes em que se fecham. São eles que se violentam a si mesmos. François anda por ali à espera do sol, não se conseguindo mover sem ele, numa apatia e desassossego constantes. E, no fim, nada resta deste trio desesperado por um lugar no amanhecer.
Não é um grande filme, mas ainda há ali qualquer coisa, ainda se sente. Ou então fui eu que sonhei, a preto e branco.