quarta-feira, 17 de junho de 2020

As Virgens Suicidas

há filmes que nos marcam muito numa dada altura das nossas vidas. a essa altura chamamos crescimento. antes de ser crescida, já era alta e estava convencida de que por isso me deixavam entrar nos filmes para pessoas crescidas. o primeiro filme para pessoas crescidas que vi no cinema e me marcou foi As Virgens Suicidas. o Tubarão também me marcou, mas de medo. fiquei a achar que ia aparecer a qualquer momento no mar do Algarve e comer o meu pai que na altura nadava tipo Katie Ledecky todos os verões da minha infância. vi As Virgens Suicidas no D. Pedro III, em Queluz. o filme estreou em Portugal no dia 16 de junho do ano 2000 e era para maiores de 16. eu estava a iniciar o meu décimo segundo verão de experiência. passado uns meses, o cinema do D. Pedro III fechou e tive de passar a ir ao Babilónia, na Amadora, que, passados outros tantos meses, fechou também. aí deixei de estar convencida que me deixavam entrar por ser alta. deixei também de ir ao cinema e recomecei as aulas de natação nas pisicnas da Reboleira. passados 20 anos, a cidade onde se encontra a Escola Superior de Teatro e Cinema ainda não tem um cinema. já lá vão uns anos, mas penso que o que ainda existe é o Cineteatro D. João V, na Damaia. não tem uma programação de cinema. nos Recreios da Amadora, também não vi nada. era fixe mudarmos isso. é fixe pôr duas cadeiras à frente do boteco e ficar a ver passar o fim de um dia qualquer, mas às vezes também é fixe não estar sempre no improviso. arranjarmo-nos, convidar alguém, ir ao cinema. 


quarta-feira, 10 de junho de 2020

terra estrangeira

um agente da PSP virou-se para um rapaz negro que falava espanhol e francês e gritou-lhe "fala português!".

um professor universitário virou-se para uma aluna branca que falava português do Brasil e disse-lhe "fala português". 

a PSP só "defende" quem é brancx, ups, quem fala português.

o professor universitário só compreende quem fala francês, ups, inglês, ups, português de Portugal. o professor compreende, mas prefere fazer que não compreende. o professor exerce uma relação de violência e não de troca de experiência. depois do que aprendeu na escola sobre Portugal e o Brasil, o professor universitário nunca mais refletiu sobre o assunto e acha-se no direito de não compreender outro português que não "o seu".

o professor universitário aprendeu que o português é só um, o que se aprende nas escolas portuguesas e mais nenhum. ó, senhor professor, a língua é um organismo vivo. vive dentro e fora da boca, vive em outras bocas e em outros corpos, adapta-se ao clima, ao mar salgado e à linguagem. a língua não pertence a ninguém, é dona de si e anda sempre a vadiar. saudosismo não cabe em mala de cabine.

em vez do amor aos lusíadas, era mais fixe começar-se a ler na escola, por exemplo, autorxs brasileirxs, para xs miúdxs se irem familiarizando com outras formas de falar português, ao mesmo tempo que se lhes abre uma outra visão da História.

e dois livros para as férias grandes:

vai, Brasil
deus-dará

carrega nos títulos e verifica a disponibilidade dos livros na Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos, na Amadora. 

segunda-feira, 8 de junho de 2020

ainda a respeito da violência

fiz o 1º ciclo do ensino básico num colégio de bem, em Benfica. a mãe trabalhava lá desde os 17 anos, o que me deu free pass para receber a educação dxs ricxs, digamos, deu-me um golden card. nunca podia fazer asneiras como as outras crianças ou dava castigo na certa. uma vez a teacher pôs-me na rua. escondi-me atrás de um armário e chorei com medo que a mãe me visse, já a pensar no castigo que aí vinha. não me faças passar vergonhas dizia. mas fiz. algumas. ainda assim, safei-me. o Nuno não teve a mesma sorte. quando a teacher me pôs na rua, o Nuno já não estava lá para o testemunhar. aos 7 anos, no fim da 2ª classe, foi dispensado da escola. o Nuno é uma criança violenta diziam. o Nuno não era filho de nenhuma funcionária. o pai do Nuno tinha dinheiro, mas o dinheiro não conseguiu dar ao Nuno um lugar no colégio dxs meninxs brancxs, ups, ricxs. o racismo não está à venda e em 95 aprendia-se na cartilha.

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em 97 chorei bué por a mãe não me deixar ir para a E.B.2/3 de Benfica para onde iam todxs xs colegas da 4ª classe e por me obrigar a ir para a escola da Amadora, mais perto de casa. antes do meu 1º dia na D. Francisco Manuel de Melo, a mãe teve uma conversa comigo sobre oferecerem-me droga. nunca ninguém me ofereceu droga, tive sempre de a comprar às escondidas do contínuo, um retornado, ups, reformado da PSP, que fazia ali um biscate. o racismo está seguro e em 97 era mantido nas escolas da periferia pela boa ordem de ex polícias da PSP.

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em 2002, na Seomara da Costa Primo, tive a primeira e única professora negra em todo o meu percurso escolar e académico. nessa altura já a turma se constituía maioritariamente por alunxs brancxs porque xs alunxs não-brancxs tinham sido encaminhadxs para o ensino profissional. o racismo institucional existe e em 2020 ainda debatemos quotas étnico-raciais.

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com o homicídio de George Floyd e a covid no Bairro da Jamaica, o país trouxe novamente à tona o seu calcanhar de Aquiles. sobre o homicídio de Georges Floyd: "se fosse branco não davam tanto protagonismo à notícia". sobre o bairro da Jamaica: elxs não pensam, têm de ser ensinadxs". "elxs", "xs outrxs", "têm de ser ensinadxs", o que sugere a irracionalidade e incapacidade da gestão das suas vidas. é o discurso colonialista do bom português civilizador que ainda hoje se (re)produz nos manuais escolares e nos almoços de família de domingo. o racismo estrutural existe. a segregação existe e subsiste na arquitetura e no pensamento. o racismo institucional está diretamente ligado à segregação residencial que nos finais dos anos 90 e inícios dos anos 00 afastou muitxs jovens da minha escola.

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a escola tem de ser inclusiva. a escola tem de ser representativa. a escola tem de desconstruir e reconstruir a História, tem de descolonizar o conhecimento. a escola tem de mudar. a começar pelas pessoas que contrata para limpar as suas instalações, pelos manuais escolares de História e de Português, pelo Plano Nacional de Leitura e pelo corpo docente e discente. mas a escola não muda sozinha. a escola existe dentro de uma sociedade organizada em torno de relações políticas e económicas. essas relações são relações de poder. a lógica do desenvolvimento e da velha "expansão", a lógica do crescimento, da inovação e da globalização não nasceu do "contato entre povos", como a escola ensina às crianças, nasceu da violência. essa violência existe e está exposta no nosso quotidiano pela visibilidade - quando apanhamos os primeiros comboios da linha de Sintra, direção Lisboa; quando vamos ao WC de um centro comercial; na fila do Centro de Emprego; nas cozinhas dos restaurantes; nas obras no prédio ao lado - mas também pela invisibilidade - nos teatros, nas universidades, na televisão, no nosso grupo de amigxs. lembram-se das telenovelas em que a empregada doméstica era sempre uma mulher negra? a liberdade e a visibilidade branca, em especial a do homem branco europeu cis hetero, é a segregação, a exploração e a invisibilidade de uma mulher negra. o privilégio branco existe. o racismo é uma problemática branca. racismo reverso não existe porque nós, brancxs, continuamos a tirar vantagem do sistema que nos beneficia todos os dias. na escola, no trabalho, no centro das cidades, nos tribunais, nas casas que escolhemos para viver. nós, brancxs, precisamos caminhar no sentido de desmontarmos os nossos próprios racismos. ainda há muito caminho pela frente. todos os dias sou lembrada disso. não poucas vezes, a minha cabeça não pensa para lá do seu privilégio branco. precisamos de abdicar dos nossos privilégios, mudando estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjectivas, vocabulário, como explica Grada Kilomba, aqui:



segunda-feira, 1 de junho de 2020

a respeito da violência

hoje é dia da criança. as crianças querem brinquedos, mas as crianças também querem direitos. assim, nós, as crianças, queremos:

- que todas as crianças possam ir à escola

- que todas as crianças queiram ir à escola

- que a escola seja gratuita para todas as crianças, bem como os manuais escolares e material de apoio

- que a encarregada de educação da criança receba todos os meses o Kindergeld, que é o dinheiro da criança, desde que a criança nasce e até completar a maioridade

- que a escola represente todas as crianças

- que a escola não se iluda com a meritocracia

- que a escola destrua a segregação

- que a escola produza inclusão

- que a escola promova a igualdade

- que a escola fomente o diálogo e o pensamento crítico

- que a escola combata a infoexclusão

- que a escola primeiro compreenda e depois explique o que foi o colonialismo português e que herança deixou

- que a escola descolonize o pensamento

- que a escola incendeie o racismo institucional 

- que a escola proceda à imediata revisão dos seus currículos e manuais escolares de acordo com os pontos anteriores


Orlando e o Tambor Mágico
Orlando e o Rinoceronte
                                 

















                               



livros recomendados pelo PNL para o 1º ciclo do ensino básico. 
nos links podem verificar a disponibilidade dos livros na Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos, na Amadora. 


E NÃO AO TPC!