quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Dogville (2003) Lars von Trier


Inserido na trilogia USA: Land of Opportunities, combina cinema e teatro Brechtiano, rompendo radicalmente com o cânone clássico. A história é relatada por um narrador omnisciente, colocando de lado a visão dos personagens. A acção decorre durante o período da Grande Depressão, pondo à prova o comportamento humano perante situações-limite.

Os residentes de Dogville eram gente boa e honesta que amava a sua aldeia, mas por alguma razão vivem num projecto de polis sem horizonte, onde o privado se mescla com o público, num olhar invasivo sobre os habitantes que nunca chegam a atingir o estatuto de verdadeiros cidadãos.
Thomas Edison Jr. – o oposto do inventor – passa os dias a vaguear imerso nos seus pensamentos, e encarna o ‘cargo’ de filósofo, reunindo os habitantes da polis em assembleias, com o intuito de lhes impor o seu ponto de vista, ao invés de lhes despoletar o espírito crítico. Ao considerar-se intelectualmente superior, o seu carácter não é bondoso, mas arrogante.
São aqui apresentados personagens-tipo, conformistas e desprovidas de autonomia, que precisam de um pastor que as guie. Há a preta que representa o papel de escrava - e que ainda tem uma filha deficiente motora - e há a branca que foge do mundo corrupto onde habitava, para conquistar autonomia e agir de acordo com o que a sua consciência dita. Grace escolhe o caminho da graça mas acaba por se afundar no pântano da natureza humana e animal, fazendo o antigo trabalho de Olívia parecer coisa de meninos.
Assim como o crash da bolsa desencadeou o declínio dos valores morais, também em Dogville esses valores desapareceram ou nunca existiram. Sendo uma carta fora do baralho, Grace é tratada como um objecto e perde toda a sua dignidade ao suportar o seu calvário, desculpabilizando os actos dos seus carcereiros pelo meio que os rodeia. Isso faz dela um ser ainda mais egoísta e arrogante que Thomas, como mais tarde o pai a faz ver. As suas tão respeitáveis boas intenções não chegaram para vencer as frentes de ataque da injustiça e do irracional, comandadas por um mundo perverso e contagioso onde até os anjos se metamorfoseiam em demónio com sede de vingança e convocam o apocalipse.
Afinal de contas, o homem bruto (Chuck) é que tinha razão - os homens são iguais em todo o lado, gananciosos como bichos - e as fotografias nos créditos finais mostram, caso a memória nos falhe, a quantidade de aldeias de cão que existem por esse mundo fora.
Sendo Grace uma deusa, encarna a tragédia como uma Medeia, e a sua vingança não é individual mas pelo bem da humanidade. Assim, queima aquele espaço para que dele não reste nada. Apenas o cão Moses sobrevive e é poupado por ter sido o único a mostrar-lhe os dentes assim que a viu.
Através da fragmentação do filme em capítulos, Trier convoca o espírito crítico, impossibilitando o envolvimento ou o choque. O próprio narrador ajuda a que a nossa percepção seja nítida, afastada e fria. O dinamarquês advoga uma arte comprometida, reflexiva e claramente posicionada, mostrando todo o desprezo que sente pela humanidade e levando ao extremo a perversidade humana. É impossível fugir à maldade e ninguém sai impune desta vida.

2 comentários:

  1. Até hoje todos os filmes de van Trier nos mostraram a maldade humana. Mas todos eles são diferentes.

    Há muitos motivos para gostarmos deste filme.
    O principal para mim, é facto deste filme ser um filme total porque representa qualquer vida, qualquer cidade, quaisquer habitantes.

    Dogville é um filme particular porque nele falamos também de teatro (mesmo para além do narrador e dos cenários) e de absoluta falsidade (todas as personagens contribuem para esta característica que culmina na vingança).

    Mas quem concretiza o último fogo é Grace.
    O caminho que Grace escolhe é o da graça, mas o da graça aparente - do real fingimento, e no final o que ela sente é alívio.

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  2. A destruição de Dogville simboliza a destruição do planeta. Em Melancholia essa destruição é explícita, mas dá-se por algo exterior ao humano. De algum modo, Grace não é bem humana, é mais uma deusa, e por isso tem esse poder de aniquilar a Terra. Penso que o alívio que sente tem mais que ver com o absoluto fardo que está disposta a suportar, em nome do Bem. Só que, claramente, esse Bem não existe.

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