quarta-feira, 23 de novembro de 2011

HABEMUS PAPAM


O novo filme de Nanni Moretti chega às nossas salas esta Quinta-feira, dia 24. Muitas críticas negativas ao mesmo já me passaram pelos olhos. Parece que estavam todos à espera de uma crítica mordaz à Igreja Católica, quando o que ele queria era falar de pessoas e do terror da responsabilidade.  
E que crítica maior que a de sugerir que a Igreja precisa de alguém com ideias novas e de um Papa que recusa a vontade de Deus?  
A Igreja é fechada, inquisidora e repressiva, e o realizador expõe os seus representantes como humanos, que mais que líderes espirituais, são pessoas, com medos e angústias.  
De portas abertas a lugares que nos estão vedados, porque divinos, Moretti invade-os com passe de acesso livre aos recantos mais sagrados da Terra.  
É a liberdade total de um criador cada vez maior e que merece todo o meu respeito e admiração.
Em baixo, o texto que escrevi para a C7NEMA.

A Razão Humana

“Habemus Papam” abre com imagens reais do enterro de João Paulo II. Logo a seguir, os cardeais deslocam-se, em fila, para o conclave onde se procederá à eleição do novo Sumo Pontífice. Cá fora, jornalistas de todo o mundo relatam os acontecimentos como se de um campeonato de futebol se tratasse. Cada um torce pelo representante do seu país.
Durante a votação, os cardeais esticam a cabeça para ver quem o colega do lado elegeu, escrevem, riscam e reescrevem o nome do seu candidato. Estamos perante uma centena de cardeais que se comportam como autênticas crianças. É uma cena com bastante humor e ao mesmo tempo um pouco trágica, uma vez que nenhum deseja assumir a enorme responsabilidade que o novo cargo acarreta, e todos rezam a Deus para que não os escolha. Colocam-se em crise os símbolos da Igreja a favor das atitudes humanas.
Nanni Moretti entra no conclave porque o cinema é invasivo e permite-se tocar o divino, o invisível e impalpável. O humor resulta da inserção de elementos incompatíveis e improváveis no mesmo espaço, conseguindo ridicularizar os valores que representam. Transporta-se o profano para o sagrado: um papa que faz psicanálise ou um campeonato de voleibol disputado pelos cardeais. Ciência vs. religião, divino vs. humano. Freud, Deus, Darwin, Chekhov e voleibol numa mesma equação.
Estabelece-se um jogo permanente com o acto de representar, uma vez que o sonho do novo Papa era ser actor. A narrativa debate-se com a dificuldade em assumir um papel, com o Homem dentro do Papa que vai à procura da sua Revelação, porque a que Deus lhe deu não lhe chega. Passa a ideia de que não existe uma sabedoria superior e todos temos de escavar no processo de auto-conhecimento. De fora, a fé dos milhares de seguidores que esperam na Praça de São Pedro. De dentro, a mente confusa de um simples homem.
Moretti e Piccoli cruzam-se apenas uma vez, para uma consulta rápida entre um público composto por cardeais sedentos por informações escabrosas. Mas o psicanalista está proibido de tocar assuntos como traumas, sonhos, desejos, sexo ou família. Não sendo religioso, o Dr. Brezzi diz a Melville que a alma e o inconsciente não podem coexistir. O sarcasmo parece estar a começar, mas não se estende por aí além. O filme não expõe uma crítica aberta ao catolicismo, mas sugere que a Igreja necessita de um líder que traga uma grande mudança. E é sobre mudanças que se medita, sobre a capacidade de escolher, sobre a razão de cada um.
“Habemus Papam” é também sobre o destino. O destino de um homem que perdeu a confiança e a esperança no seu Deus. Que tem dúvidas quanto à sua capacidade de atingir os objectivos que Este lhe pôs nas mãos. Um seguidor a quem o papel de líder espiritual de um bilião de católicos o assusta e paralisa. Quem, em plena consciência, aceitaria de imediato tal papel, a menos que acreditasse ser a vontade de Deus, que o guiaria no desempenho desse ofício? Tal como Brezzi lhe diz, essa não foi a vontade de Deus, mas a dos cardeais. Só que estes não o escolheram por o considerarem um líder extraordinário - pois percebemos que ninguém estava à espera de tal resultado - mas porque todos terão pensado que mais ninguém votaria nele. E essa desresponsabilização irá manchar a Igreja de vergonha.
Toda a acção é agridoce. Por um lado, os cardeais parecem estar a festejar o facto de não terem sido ‘o escolhido’. Tomam cappuccinos, jogam partidas de cartas e entregam-se entusiasticamente a um torneio de voleibol. Por outro, é preciso perceber que estão a viver na ilusão e não têm conhecimento da verdadeira dimensão do problema. E à noite, sozinhos nos seus quartos, que o medo é exposto através de cigarros, comprimidos e pesadelos.
Há um plano extraordinário que se repete ao longo do filme: o das cortinas vermelhas a esvoaçar no vazio. Cria-se um jogo quase melancólico de luz e sombra, do visível e do desconhecido que exemplifica magistralmente o que Moretti quis mostrar neste filme. Pisamos o terreno da desconstrução dos hábitos da fé cristã, onde o Papa tem o direito de renunciar ao cargo, por livre e espontânea vontade. Uma bênção à liberdade de expressão.
Michel Piccoli tem uma performance notável, transmitindo humildade, inteligência, medo ou puro prazer unicamente através da sua expressão e do movimento dos olhos.
O filme contou com um orçamento de 8 milhões de euros, a produção mais cara do realizador até à data, em parte devido à rigorosa recriação da Capela Sistina na Cinecittà.

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