Na semana passada vi o novo filme de Lars Von Trier. Saí a flutuar da sala de cinema e demorei vários dias a processar a experiência. Fiquei confusa. Estará Trier, literalmente, a gozar connosco, ou será antes um objecto de profunda reflexão? Depois li e vi muitas entrevistas dadas pelo realizador e pelas actrizes e comecei a inclinar-me para a segunda hipótese.
A sinceridade de Trier é uma coisa rara. A sua inteligência sarcástica aliada à sua timidez nervosa chega a comover-me. É um prazer ouvi-lo, bem como a Charlotte Gainsbourg, a menina-mulher por quem me apaixonei em The Science of Sleep, e que agora está tão crescida, que às vezes me pergunto o que terá ainda guardado para nos dar. Charlotte é apaixonante, desde logo pela doçura lânguida da sua voz. Era capaz de ficar a ouvi-la uma vida inteira.
Eu não gostei nada do filme, para mim quase tão mau quanto “Tree of Life“. Um pastiche de mau gosto e superficial dos filmes de Tarkovski ou Bergman. A entrevista de Trier aos Cahiers apenas veio confirmar essa minha impressão. Creio que o Trier quis fazer algo com um ar “profundo“ para aceder ao Olimpo. Mas tudo soa a falso. É inevitável. O mimetismo não resulta porque os filmes do Bergman e do Tarkovski eram uma expressão artística – natural e orgânica – de questões vivenciais, políticas, religiosas. Transfiguradas por formas cinematográficas pessoalíssimas. Em contraste, e a título de exemplo, a primeira parte de Melancholia é banal, feita de lugar comum atrás de lugar comum sobre a vida mundana, a publicidade e o consumismo. Nada de novo, nenhuma descoberta. Mas – e aqui ironicamente, uma vontade de jogar paradoxalmente com o marketing? – o Trier além de querer ser “profundo“ também quer chegar a todo o lado tão rápido como um relâmpago. De modo que a primeira pergunta a fazer sobre o filme é: por que razão o filme aborda uma história sobre a alta burguesia norte-americana? Porque é que o filme — co-produzido (creio) por vários países europeus — é falado em inglês e tem actores maioritariamente de origem anglo-saxónica? Mais importante: como resolver a equação que tem de um lado a alta sociedade norte-americana (creio Trier nunca viveu nem sequer visitou os EUA) e do outro tem -- supostamente -- uma obra artística pessoal do Trier? (para Dogville havia uma boa resposta a esta pergunta)
ResponderEliminarA Kirsten Dunst é muito, muito bela, um modelo ideal para uma pintura ou uma estátua. Está em todos os planos mais conseguidos do filme. Paradoxamente, a sua expressividade no jogo da representação fez-me lembrar o Robert Mitchum! Se calhar o Mitchum era a melancolia personificada, poderia retorquir o Trier. Só que de um opacidade tão pronunciada que dificilmente se consegue olhar lá da superfície, para o interior.
No início de “Vivre sa vie“ ouve-se uma criança dizer: « Une poule est composée d’un intérieur et d’un extérieur. Si on enlève l’extérieur, il reste l’intérieur, et quand on enlève l’intérieur, on voit l’âme. » Em Melancholia tudo se resume ao exterior, o interior está ausente. E o resultado inexorável é aquilo que falta ao filme: justamente, a ausência de alma.
Miguel Preto
Miguel, obrigado pelo comentário. Bastante eloquente e interessante. Compreendo os seus pontos. É um filme muito particular e pessoal, que terá as mais variadas interpretações. E isso também é bom. Quanto a mim, considero-o extremamente inteligente, com uma direcção de actores notável e um cuidado pela imagem que quase não precisaria de palavras. De resto, penso que já disse tudo na análise, por isso não me alongo mais. Cumprimentos
ResponderEliminarOlá Inês, não estamos de acordo sobre este filme. :-) Na verdade, acho que percebo o que queres dizer a propósito da direcção de actores (mise en scene complexa) e da imagem muito trabalhada. Nesse aspecto, a minha opinião é obviamente subjectiva — não gostei. O resultado do trabalho de actores — complexo, sofisticado — não traz nada de novo, é standard; a imagem achei-a pesadona, um pouco retrógrada, reminiscente de uma certa pintura do século XIX? (a minha terminologia é muito imprecisa, desculpa)
ResponderEliminarJá agora, gostei muito dos posts sobre o neo-realismo italiano!
Miguel Preto
Miguel, não estamos de acordo nem precisamos de estar. Este filme põe, de facto, as pessoas a falar e consegue esse extremo: ou se gosta muito ou não se gosta nada. Não acho, de todo, que cada filme tenha de trazer algo de novo, mas novos acabam por ser os personagens, e é o dramatismo que os actores lhes imprimem que faz parte da força do filme. Depois, aquelas imagens do jardim à frente da casa parecem-me bastante surrealistas. E daí a melancolia, Freud e o inconsciente.
ResponderEliminarMais uma vez, obrigada. Gostei bastante de escrever sobre o neo-realismo. Foi uma época importante na minha aprendizagem. Já agora, não tens blog ou coisa parecida?
inês, fico bastante contente de me teres encontrado aqui e poder adicionar alguém que escreve bem sobre cinema :)***
ResponderEliminarVanessa, o prazer foi meu. Vi o link para o teu blog na RDB. Vamo-nos cruzando. Beijinhos
ResponderEliminarSobre este filme não faltou dizer quase nada.
ResponderEliminarLars apresenta-nos neste filme todas as ansiedades e todos os medos, presentes nas irmãs que, segundo ele, o representam.
Eu destacaria sobretudo a forma como Lars filma. Para mim, é na forma como mensagem subliminar que está grande parte do que mais importa na película. Na forma vemos que o desprendimento está todo lá ainda que com a crescente preocupação ao nível detalhe estético (esta tem sido uma característica cada vez mais presente nos seus filmes). É aqui que me parece que o tal movimento Dogma 95 já lá vai.
Por último, na minha opinião, importa lembrar duas evidências: a primeira é o humor requintado presente em grande parte do filme, a segunda é Wagner.
RM
RM, tem toda a razão. O "humor requintado" está presente, principalmente, no primeiro capítulo do filme. Tanto o casamento, em si mesmo, como as peripécias que se sucedem, são, aliás, um total absurdo. Desde a noiva que vai tomar um banho, passando pelo discurso da mãe (a fenomenal Rampling) e até à cena de sexo. Quanto a Wagner, haveria igualmente coisas a dizer. E tanto mais assim é quanto mais vezes vemos o filme. Gostava imenso de ler a sua análise, caso a tenha feito. Cumprimentos.
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