Foi com este filme que conheci Fellini e Giulietta Masina. Apaixonei-me desde logo por esta dupla que fez obras tão belas como Julieta dos Espíritos, O Conto do Vigário ou As Noites de Cabíria. La Strada é o meu preferido do realizador e da actriz e é a ele que dedico as próximas linhas.
Ao contrário de outros realizadores neo-realistas, Fellini pensava as suas personagens como seres individuais e não colectivos, seguro de que desse modo também podiam ser relevantes e verdadeiras, mostrando de uma forma muito peculiar o seu neo-realismo, alvo, por isso mesmo, de imensas críticas, uma vez que a base desta estética era pautada por um compromisso social e moral com regras ideológicas ao qual Fellini nunca cedeu, não prescindindo da singularidade do seu génio para criar personagens e acontecimentos pouco convencionais.
Deste modo, o neo-realismo de Fellini deixa de ser social e psicológico para se tornar espiritual, descrevendo os acontecimentos ao invés de os analisar. A propósito deste filme, André Bazin afirmou: “(...) este maravilhoso (do filme) não é nem sobrenatural, nem gratuito, nem sequer “poético”, ele aparece como uma qualidade possível da natureza. Além disso, para voltar à psicologia, a característica destes personagens é justamente não a ter (...) mas têm uma Alma.” La Strada é de uma dureza puramente realista, na forma como nos são apresentadas as personagens, as casas, os bares e as ruas de uma Itália perdida no desamparo do pós-guerra.
Os personagens de Fellini são indefinidos, portadores de sentimentos imperfeitos porque a perfeição espiritual não existe. Pensando o cinema como “meio visual”, Fellini mostra-os pela sua aparência e cria-os através dos acontecimentos. Gelsomina, uma jovem pouco inteligente, é vendida a Zampanó, artista de rua que percorre o país e que precisa de uma ajudante para executar os seus números, construindo os dois uma relação muito singular. Ele é um homem com modos rudes, que bebe demais e gosta da sua liberdade e de dormir com outras mulheres. Ela é doce e ingénua, e sonha com o dia em que será feliz, esforçando-se por ser um bom palhaço e agradar a Zampanó. Mas os seus sonhos não se tornam realidade e acaba por fugir, impulsionada pelas saudades da sua terra e da sua família. Quando Zampanó a encontra e lhe bate, ela percebe que nunca poderá escapar-lhe.
O tempo vai passando por Itália e pelos personagens, enquanto percorrem juntos a estrada pobre e triste, e sofrem com a falta de comunicação. O trabalho é algo que os aproxima e lhes dá uma natureza social. Cada repetição do número de Zampanó, que consiste em partir correntes expandindo os pulmões, serve para nos mostrar o vazio do seu mundo e a aproximação da decadência. Quando ele mata o Bobo, Gelsomina fica petrificada com os poderes de tal homem e começa a comportar-se como uma louca, levando a que Zampanó a abandone.
Giulietta Masina desempenha um papel extraordinário. Sobre o seu desempenho Fellini disse: “é o único exemplo em que obriguei uma actriz com um temperamento exuberante, agressivo, até pirotécnico, a fazer o papel de uma criatura tímida, com um clarão de razão e de gestos sempre no limite da caricatura e do grotesco”. Masina inspirou-se em Chaplin para conseguir criar o seu personagem.
Quando Zampanó descobre que Gelsomina morreu, apodera-se dele uma solidão e uma dor de que não se consegue libertar, apercebendo-se do quanto gostava dela. Arrependido pelos seus actos e pelo falhanço da sua vida, deixa-se engolir pelo mar, num choro desesperado.
O filme conseguiu mais de 50 prémios, entre eles o Leão de Prata do Festival de Veneza e o Óscar para melhor filme estrangeiro.
Fugindo à critica de classe pelo qual o neo-realismo se caracterizava, La Strada é um drama humano universal que mostra o que Fellini considerava “a experiência conjunta do homem com o homem”. É um conto solitário que nos lembra A Bela e o Monstro. Contém ainda valores cristãos tradicionais, evidenciados na relação entre Zampanó e Gelsomina, que com a sua bondade lhe ensina a ceder ao coração. Preso na sua amargura, Zampanó liberta-se cada vez que parte as correntes, ao mesmo tempo que mantém a sua assistente numa verdadeira prisão. Existem simbolismos católicos ao longo do filme. Gelsomina é frequentemente modelada em figuras religiosas. Numa cena aparece em frente a um poster anunciando a “Imaculada Nossa Senhora”. O Bobo tem algumas semelhanças com a imagem de Cristo e conta uma parábola a Gelsomina. A crítica tem especulado sobre a importância da “trindade” nas personagens centrais. A crítica americana Pauline Kael avançou que o Bobo representaria a “mente”, Zampanó o “corpo” e Gelsomina a “alma”.
“É uma poesia que atrai ou subverte, mas através da sua expressão cintila no entanto um traço de poesia luminosa.” (Freddy Buache, Le Cinéma Italien)
Talvez o filme mais acessível de Fellini, e o meu favorito. Parabéns pelo blog !
ResponderEliminarHm, penso que o "La Dolce Vita" é mais acessível, pelo menos é o que toda a gente conhece, talvez muito pelo Mastroianni e pela Anita. O "La Strada" é também o meu preferido, logo seguido pelo "I Vitelloni". Obrigada pela passagem.
ResponderEliminar"Os personagens de Fellini são indefinidos, portadores de sentimentos imperfeitos porque a perfeição espiritual não existe. Pensando o cinema como “meio visual”, Fellini mostra-os pela sua aparência e cria-os através dos acontecimentos."
ResponderEliminarSem dúvida; gostei muito de ler o texto. Sou um fã da fase pós-8 1/2, mas La Strada e I Vitelloni são óptimos filmes que preciso de rever.
Muito obrigada. Dessa fase os meus preferidos são "Julieta dos Espíritos" e "Amarcord", mas claramente prefiro a pré-8 1/2. A partir dos anos 60, o realizador começa a enveredar pela fantasia existencial e já não gosto tanto disso. Mas eu sou fã incondicional do neo-realismo.
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