quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Sangue do meu Sangue


Com uma impressionante carreira à volta do Portugal raramente mostrado no grande ecrã, João Canijo atinge em Sangue do meu Sangue, o modus operandi perfeito que tem vindo a desenvolver desde Noite Escura. Além dos diálogos cruzados, surge agora uma parede que divide o plano em duas cenas, e nunca antes tivemos de trabalhar tanto as nossas escolhas sobre o que queremos ver. Logo no início, na cena em casa do dealer, observamos a fragilidade das filhas na cozinha e a violência abafada dos homens na sala. Há uma aura de tragédia que se desenha desde o princípio, mas que não atinge o seu expoente, porque o trágico é constante no subúrbio, é rotineiro. Aqui não há redenção. O filme termina, mas a vida dos personagens continua, igual a si mesma. Não há saída daquele mundo e os seus habitantes levaram uma anestesia geral que os faz suportar qualquer desgraça. Há segredos e mentiras (como no filme do inglês Mike Leigh, referência para Canijo no trabalho de actores, a par de Cassavetes) e traições entre uma mãe e uma filha, uma tia e um sobrinho, irmãos e casais. É a vida como ela é, portanto.
Os pequenos grandes pormenores que decorrem do intenso trabalho com os actores, de algum modo traçam a marca do realizador, como quando Ivete, na cena mais perturbadora do filme, pergunta a Telmo onde é o quarto. Foi de Anabela Moreira a ideia, saiu-se com a pergunta num dos ensaios.
De realçar também as televisões acesas no mundial na casa do dealer, nas novelas na casa de Márcia e nos noticiários na vivenda dos ricos. Desarmante é ainda a verdade com que Beto mente à mulher. Marcelo Urgeghe, o único que destoa – facto ainda mais notório na versão longa - do excelente elenco aqui reunido, encabeçado por Rita Blanco, mas onde a maior revelação é Anabela, que em Mal Nascida não me havia encantado, está agora seguríssima na intensidade disfarçada com que se entrega a Ivete, quase uma sombra dentro da casa, a única personagem que está realmente sozinha. Ainda assim, a sua força prevalece quando na casa de Telmo o encara, enquanto Joca fita o chão. A fragilidade com que dança e canta para o seu opressor, o abraço que dá ao sobrinho, com o outro a esvair-se em sangue na cama... Ela transporta uma doçura esquecida, que contrasta com o furacão Márcia, mulher que nunca chora, nem desiste da tragédia incestuosa com que tem de lidar. E consegue ultrapassá-la, mesmo que tenha de mentir à filha e de deixar o filho à sua mercê – Joca está, literalmente, todo partido a gemer de dor no sofá e a única coisa que ela faz é dar-lhe um raspanete. Mas ele é um delinquente, já esteve preso e continua sem tomar um rumo. Márcia desistiu dele, transferindo todas as suas aspirações para a filha, querendo que ela tenha o futuro que a mãe perdeu.
É um argumento riquíssimo, desta vez já não inspirado em tragédias gregas, mas onde podemos ler, na nota de intenções, citações de Shakespeare e de Lobo Antunes, respectivamente:
“Nós somos feitos de sonhos, e a nossa pequena vida anda às voltas num sono.”
“A única coisa que qualquer um de nós quer na vida é ser amado sem explicações. Queremos amor incondicional, sem dar nem receber explicações. O amor mais profundo é o que não precisa de razões para existir.”
“O amor incondicional pode ser posto à prova, mas nunca é posto em causa” e aqui o fim é a felicidade da pessoa amada, nas várias relações que se estabelecem.
Noite Escura não deixa de ser o meu preferido do realizador, mas agora estamos, definitivamente, num patamar mais elevado e estável – se não tivermos em conta a versão longa que perde a envolvência da narrativa central e se detém em cenas de sexo, explicações ou personagens que não acrescentam nada ao filme.
João Canijo é o melhor realizador português da actualidade e Sangue do meu Sangue está entre os seus três melhores filmes, a par do já mencionado Noite Escura – onde Beatriz Batarda tem o papel da sua vida – e Ganhar a Vida – Rita Blanco a incarnar a grande personagem da sua “parceria” com o realizador.
Quem se interessar pelo trabalho de Canijo, pode ler a entrevista sobre a sua obra ou ver o vídeo.

4 comentários:

  1. Parabéns por este (jovem!) blog de cinema.

    Seguirei atentamente.

    Cumps cinéfilos.

    ResponderEliminar
  2. Muito obrigada, Sam. Também vou seguir os teus!

    ResponderEliminar
  3. O filme é, de facto, notável. O trabalho dos actores é, em geral, impressionante, e resulta
    sem dúvida do trabalho colectivo na concepção e ensaios anteriores à rodagem – creio que um
    pouco na linha de Cassavetes e dos irmãos Dardenne. Mas, além disso, é um filme muitíssimo trabalhado
    na imagem e no som. O tal plano dividido ao meio pela parede é disso um bom exemplo; os planos em profundidade (em “3D“ :-) através de portas e divisões da casa em que a acção principal acontece
    perto da câmara enquanto esta regista simultaneamente os movimentos e diálogos dos personagens das cenas “secundárias“. É um tipo de
    composição que, a propos do post acima, me fez lembrar o Ozu, embora não seja exactamente a mesma coisa, por virtude de ser mais tensa e não optar pela câmara fixa. Mas nada disto no filme do
    João Canijo é artificial, não deixa a impressão de que o realizador está a divertir-se com um exercício formal de virtuosismo, nada aqui é exibicionismo. Na verdade, estes planos servem o propósito bem
    concreto e tangível, simples “a posteriori“, de levar o espectador sentir como será viver naquele espaço, num bairro em que as pessoas se vêem forçadas a viver em espaços extremamente compactos, com pedacinhos de privacidade que têem de ser arrancados por vezes aos berros ou em atitudes bruscas. A tensão que se gera torna-se perceptível ao espectador, e permite-lhe sentir aquilo que leva os personagens tão perto dos seus limites — de compreensão, de pensamento, quase ao fim da resistência. O som de tudo o que se passa à volta, nas divisões vizinhas, nos pátios em redor, transforma-se assim numa espécie de música que acompanha a realidade do filme, é um documentário no seio da ficção, longíssimo de qualquer tipo de pitoresco, antes fazendo parte integrante e de forma orgânica com a vivência dos personagens. Outro aspecto a salientar é a impressão de que, neste aspecto preciso, o filme foi beber ao cinema português actual, estou a pensar “No Quarto da Vanda“ do Pedro Costa e a outros lados (lembrei-me do “Querido Mês de Agosto“ do Miguel Gomes a propósito do karaoké).

    “Godard is dead“? Quem melhor do que o Godard mostrou como o som e a imagem fazem parte de um todo orgânico como o filme do João Canijo ilustra de forma tão feliz?

    Belo blogue, vida longa a “Godard is dead“!

    Miguel Preto

    ResponderEliminar
  4. Olá, Miguel, obrigada pelo comentário. Bela análise. Percebo o que quer dizer com a ligação a Ozu, um cineasta que muito aprecio, mas não sei se concordo em absoluto com a referência aos Dardenne. Penso que o trabalho de actores em Canijo, Cassavetes ou Mike Leigh é muito mais visível e marcante. Os personagens Dardenneanos não têm a força dos outros, aos meus olhos. Também não acho que o cinema de Canijo tenha alguma coisa que ver com o de Pedro Costa e não tenho a mínima paciência para o "No Quarto de Vanda", tenho sim para "Aquele querido mês de Agosto" e para o "Como desenhar um Círculo Perfeito". Mas Canijo é o único cineasta português a fazer isto, isso de que tão bem falou. Uma realidade que conheço bem. Nos primeiro planos do filme, com o Joca a caminhar, vê-se a casa onde vivi muitos anos.

    Godard is dead é, primeiro, uma clara referência a Nietzsche - God is dead -, e entra em desacordo com a teoria de Godard, proclamada em 67, de que o cinema teria acabado. Para o Godard acabou, é um facto, mas o cinema continua bem vivo. "Sangue do meu sangue" é disso prova. Daí, Godard is dead, Cinema is Alive.

    Mais uma vez, obrigada, e visite o Godard mais vezes!

    ResponderEliminar