quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A Noite Escura de João Canijo



Falei neste filme dois posts a baixo, dizendo que não é o melhor do percurso de Canijo. Sangue do meu sangue destronou-o amavelmente. É bom sinal. No entanto, este é o filme do meu coração. Já perdi a conta às vezes que o vi. Talvez ultrapasse a dezena. Sei grande parte dos diálogos de cor, os gestos dos personagens, os movimentos de câmara. Percebi o meu fascínio por ele, quando, na faculdade, um professor nos pediu que analisássemos um filme à nossa escolha. Imediatamente, de entre todos, escolhi este.
É através de um genérico soberbo que tem início a acção trágica. Carla, interpretada pela quase irreconhecível Beatriz Batarda, de cabelo desalinhado, aparelho nos dentes e mal arranjada, limpa sozinha uma casa de alterne, rigorosamente recriada, com cortinados brilhantes e sofás vermelhos. Ouvimos apenas a música triste e pesada, enquanto a jovem olha para a imagem de uma santa e a deita no lixo; e com a santa vão os seus sonhos traídos, a esperança de uma outra vida. Mais tarde a mãe pergunta-lhe como é que a santa foi parar ao caixote do lixo, ao que Carla lhe responde: “Por milagre”. Não há espaço para coisas sagradas naquele antro de podridão. A porta da casa de banho abre-se, uma luz verde fluorescente fere-nos a vista, e Irka está estendida no chão, envolta em sangue. É nos braços de Carla que acaba por morrer, balbuciando qualquer coisa que não conseguimos perceber. O destino está traçado e coberto de tragicidade.
Celeste (Rita Blanco) anda sempre tão distraída com os seus pensamentos (diz que precisa de fazer um peeling) que nem presta atenção ao sangue que Carla limpa, à água ensanguentada que despeja na sanita (esse vermelho que brota de todo o lado e também dos lábios e do vestido de Celeste, a mulher que com “os olhos virados para dentro” encerra a tragédia, o vermelho da sedução e da morte, duas palavras-chave neste filme).
Canijo consegue não só acompanhar o processo de degradação de uma família, como as vidas que habitam um mundo onde a degradação já se iniciou há muito tempo. Uma das raparigas que trabalha para Nelson, numa conversa com um cliente, diz-lhe que não gosta de prisões, quando ela está na maior de todas. As raparigas zangam-se entre si por as colegas lhes roubarem os clientes e fazem queixa aos patrões. Não querem saber de ninguém, só delas mesmas – “eu não quero saber quem morreu... estou com uma dor de cabeça!”, queixa-se a Carla uma brasileira. Outra cobra uma máquina de lavar a um cliente, “semi-profissional”, como a da sua mulher. É um mundo de trocas onde não há espaço para relações sem interesses. As personagens estão de tal forma anestesiadas contra a brutalidade e o horror, que não reagem quando uma mulher é degolada, ou quando outra se enforca. À medida que a noite avança, ferem-nos com a sua impassibilidade imoral. Não são portadoras de falsos moralismos nem despertam a nossa empatia. Nem sequer Carla é uma personagem com a qual criemos laços ou nos identifiquemos, porque todas fazem parte de um mundo que nos está privado e com o qual não queremos ter contacto. As filhas não escolheram ter “uma mãe que é puta e um pai que é chulo”, aconteceu-lhes, e isso é que é verdadeiramente trágico - a impossibilidade da escolha, o destino traçado.
É numa única noite, numa noite escura de Inverno, que se desenrola toda a acção. Os personagens estão condenados desde o início, enjaulados numa casa que é uma autêntica personagem viva, a maior de todas, a que vigia e encerra todas as outras. O espaço parece um labirinto, uma encruzilhada, de onde ninguém pode escapar, porque quem escapa, escapa para a morte. Por isso é lá dentro que as personagens se refugiam. Essa claustrofobia espacial é conseguida pelo exímio trabalho de câmara. Os planos sugerem continuidade, a câmara deambula e deixa os personagens correr livres. O grande plano é usado intensa e expressivamente, desviando o nosso olhar do acessório. Os diálogos quase tragicómicos, também nos dão a noção desse espaço pequeno e fechado onde não há segredos. Ouvimos quase sempre duas conversas ao mesmo tempo, uma das personagens em grande plano, outro das personagens ao fundo ou até fora de campo. O som é o visco que as liga. As cores são intensas, carregadas, brilham mais que as pessoas que circulam pelo meio dos corredores tortuosos que vão dar a todo e a lugar nenhum.
É Carla, o membro mais forte da família, quem tenta limpar a morte das raparigas russas, a morte que também será dela. Mas não consegue apagar o seu rasto, Ela é a única personagem ainda lúcida, e é por isso que, rodeada de cegueira, se atira para a morte, quando se apercebe que já nada pode fazer. Prefere morrer a viver com esse peso, com essa lucidez que a cega de raiva. Apesar de ser uma pessoa fria, o seu coração é de facto o maior. Ela é também a única pessoa ali com carácter. Forte, decidido, transparente.
Quanto a Celeste, pelo contrário, sabemos que não quer que a filha parta, mas o seu comportamento é sempre brando, não toma uma atitude definitiva. E enquanto a sua filha querida canta na sua grande noite de estreia, ela goza do prazer carnal com um cliente. É apenas no fim que Celeste mostra a sua força, quando pega no revólver com o qual Carla disparou contra os russos, e mata o marido, como lhe havia prometido. Celeste também o mata depois de este se deitar sobre a filha que morre no chão, como se estivessem num acto sexual, enquanto Carla suspira de dor. Ao ver o amor que pai e filha nutrem um pelo outro, e ao ver o seu amor partir não se sabe para onde, reza um “Pai Nosso” e dá-lhe um tiro. Morrem então juntos, os dois amantes proibidos.
A estória do filme inspira-se, em parte, na tragédia grega “Ifigénia em Áulis” escrita por Eurípedes entre 408 e 406 a.C. “Noite Escura” é uma tragédia familiar onde a grandeza da história original se afunda numa casa de alterne, sufocada pela sua rotina grosseira e sórdida. Canijo aperta a atmosfera quente e selvagem, esmaga os protagonistas com a sua câmara, insere-a por entre sons e conversas, condensa o espaço e expande o tempo. As personagens trazem a tragédia no olhar e carregam a inevitabilidade do destino. Mas o destino que carregam tem, contraditoriamente, algo de libertador, uma espécie de salvação. E não há melhor expressão dessa ambivalência emocional que a personagem Carla, que sente a angústia de não poder salvar a sua família corrompida e derrotada pela vida, sendo a morte a única saída possível para a dor que sente. Quando está estendida no chão, trespassada por balas, Sónia diz-lhe “não morras, Carla, tu não podes roubar a minha morte”. Sónia está disposta a ir de encontro ao sacrifício, pois só ela pode salvar a família, sentindo-se, ao mesmo tempo, mártir e heroína, ao ter nas mãos esse poder único, que a oprime e liberta. A liberdade e a rendição são dois conceitos que caminham lado a lado e que se fundem na impossibilidade de serem um só. Aqui a liberdade é a causa da rendição, a prostituição é pintada de fatalidade e o erotismo de opressão.

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