Apesar da crise que o cinema italiano atravessou, Rossellini realizou doze filmes num período de dez anos e é inevitável atribuir-lhe o título de pai do neo-realismo. Quando iniciou aquela que ficou conhecida como a “trilogia neo-realista”, sabia não poder contar com estúdios ou cenários. Os recursos eram mínimos, mas a partir deles confrontou o cinema e o mundo com a realidade de ruínas, caos e decadência. Os três filmes são Roma, Città Aperta, Paisà e Germania Anno Zero. A análise dos mesmos tem como ponto de partida as três figuras representadas no argumento de Rossellini – a confissão, o escândalo e o milagre – e o modo como a verdade poderia saltar delas.
ROMA, CITTÀ APERTA (1945)
O primeiro filme demonstra algumas novidades estilísticas e desenvolve a procura de liberdade, conseguida com a vitória sobre a ignorância, as paixões, a dor e a morte. Exemplo disso é a cena final, quando as crianças que preenchem quase todo o filme caminham sobre a vista da abóbada de S. Pedro, apontando a liberdade sobre a via “católica”, como que uma via de fraternidade universal.
Rossellini perguntou: “se as coisas estão lá, para quê manipulá-las?”. Respondeu com um filme comunitário, dirigido ao coração, onde sobressai o autêntico. Roma é cidade real em toda a sua sujidade e tinha sido libertada apenas há dois meses quando o realizador começa a filmar a sua Cidade Aberta. É um filme importante porque faz da libertação italiana o ponto de partida de uma verdadeira reviravolta social, económica e política.
A história decorre durante os últimos dias da ocupação nazi. O argumento foi quase literalmente ditado a Rossellini e Sergio Amidei (argumentista deste filme ao lado de Fellini) por um chefe da Resistência que lhes narrou o quotidiano dos combates secretos que cozinharam a Libertação. A Resistência é o grande tema deste filme e Pina e Don Pietro são os seus heróis, sacrificando a sua vida pelos ideias em que acreditam. Além da base real que integra, Rossellini utilizou também imagens da época, o que aproximou a película do género documental.
Pina (Anna Magnani) é viúva e tem um filho pequeno e outro na barriga, resultado da relação com Francesco, membro da Resistência Italiana. A sua atitude perante a vida confere-lhe uma superioridade moral que faz dela o espírito ideal da mulher italiana, dotado de força, sinceridade e compromisso. É ela a grande heroína desta história. Luta sem desistir e toma conta da família sem adoptar a postura de mãe mártir. É ela quem assalta a padaria e é ela quem morre, grávida e cheia de vida, ao perseguir o carro nazi que leva Francesco. A mulher não faz a guerra, mas sofre mais do que os homens, e a luta que vemos no ecrã não é a das trincheiras, mas a das pessoas que combatem por uma existência mais digna. A morte da mulher do povo, do resistente comunista e do padre podem encarar-se como uma espécie de união humana onde acontecimentos como estes são precisos para alcançar a liberdade final. Os soldados que matam Pina são interpretados por soldados alemães presos depois da guerra. Este é um excelente exemplo do que o cinema neo-realista tem para nos oferecer em relação ao não-actor. O papel destes soldados é de extrema importância se pensarmos que nada poderia ser mais real do que alguém que não está a representar, mas sim a cumprir ordens. “Para criar o personagem que alguém tem em mente, é necessário que o realizador entre numa batalha com o seu actor que normalmente acaba com a submissão ao desejo deste. Visto que eu não tenho o desejo de gastar a minha energia numa batalha como esta, apenas uso actores profissionais ocasionalmente.” (Rossellini)
O neo-realismo de Rossellini “resume-se em três palavras: amor ao próximo”. Interessa-lhe dizer a verdade sobre a Itália do pós-guerra: o desemprego, a dureza da vida nos campos, a delinquência, a condição feminina, etc.
“A força deste filme consiste em fazer sair os heróis não de hipotéticos desenvolvimentos metafísicos mas sim de uma dolorosa e visível conquista da dignidade. O carácter quase simbólico das personagens não foge nunca ao realismo da autenticidade; pelo contrário, ilumina do interior uma situação extrema que, ao reunir factos precisos e datados, consegue alcançar a violenta transparência da grandeza trágica” (Freddy Buache, Le Cinema Italien)
PAISÀ (1946)
Rossellini filma pessoas, não pensamentos, o que dificulta a visão dos filmes por aqueles que querem pensar mais as imagens do que propriamente vê-las. É aqui que surge Paisà, filme de guerra por excelência e da “libertação” (embora o caminho até ela se mantenha manchado de morte e traição), onde encontramos não só a tentativa de a obter por parte dos italianos, como pelos americanos, tentando compreender alguma coisa que permita ultrapassar diferenças culturais e étnicas. No final do filme o cerco fecha-se em volta dos resistentes e termina com uma fileira de corpos amarrados e atirados à água pelos soldados nazis, enquanto uma voz nos diz “quatro meses mais tarde a guerra tinha acabado” - a morte como sacrifício necessário para alcançar a liberdade.
GERMANIA ANNO ZERO (1948)
Para encerrar este capítulo, Rossellini produz e realiza em alemão Deutschland in Jahre Null. Dedicado à memória do seu filho , tem como protagonista o jovem Edmund e realça novamente o reflexo da morte que culmina no seu suicídio, resultado do desespero associado aos restos do regime nazi – o fim da esperança na liberdade.
Observamos uma cidade material e moralmente destruída através dos olhos de uma criança que nos grita o seu sofrimento vindo de pecados de outra gente. Alemanha Ano Zero tenta reproduzir o “Inferno”, arriscando dizer que para alcançar o “Paraíso” seria necessário atravessar todo este caos e conhecer verdadeiramente a experiência real até chegar ao sonho.
A trilogia de Rossellini sobre a Segunda Guerra Mundial é dotada de uma aura de “sacrifício heróico” de pobres inocentes que são devorados pelo sistema. Todos os episódios de Paisà terminam tragicamente: os americanos tentam ajudar os italianos, mas a diferença de perspectivas faz com que não consigam comunicar. Em Germania ambas as gerações (a antiga e a nova – o avô e o neto) estão condenadas à destruição. A desagregação da família retrata a perda de ideais. Em Roma, Città Aperta, a inocência de Pina levou-a à morte, o padre que luta pela justiça adoptando os ideias comunistas acaba por ser fuzilado, e Marina vende a sua moralidade para obter conforto e para se afogar na loucura, por ter denunciado o seu amante. Estes sacrifícios cultivam as sementes de um regime mais digno.
Gostei muito e tendo começado a ler o blog com uma abordagem excelente do neo-realismo italiano fiquei preso. Irei continuar a ler.
ResponderEliminarA propósito e porque é evidente a sua ligação ao cinema, aconselho vivamente, se acaso não conhecer, a seguir o blog:
http://numaparagemdo28.tumblr.com/.
Acredite, não se arrependerá.
Sem dúvida perspectivas muito interessantes sobre a trilogia neo-realista de Rossellini, gostei muito de ler e devo dizer que o meu preferido é o último. Bom trabalho :) Cumprimentos
ResponderEliminarhttp://onarradorsubjectivo.blogspot.com/
Caro Joaquim, muito me apraz que tenha gostado. De facto, o neo-realismo italiano é, para mim, a época áurea da História do cinema.
ResponderEliminarSou seguidora do blog do João, numa paragem do 28, e foi através dele que ontem cheguei ao seu, O meu amigo John Doe. Gostei bastante e também irei continuar.
Narrador (não sei o teu nome), vi que também publicaste filmes desta época no teu blog. Irei ler com o devido tempo.
ResponderEliminarNão consigo escolher um destes três, todos são especiais à sua maneira.
Obrigada e até breve
O meu nome é David. Sim, mas mais em jeito de "remember" do que em jeito de análise. Já agora, devo dizer que gosto ainda mais dos filmes com a Ingrid Bergman, como o Viaggio In Italia e o Stromboli, salvaguardando as diferenças.
ResponderEliminarTambém gosto muito desses dois, David. Talvez ainda os traga para aqui.
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